segunda-feira, 22 de novembro de 2021

POR FIM UMA VISÃO POSITIVA DE FUTURO




(Os fatores de indeterminação e incerteza que já se faziam sentir antes da ocorrência da crise pandémica produziram globalmente uma perceção de futuro mais pessimista do que risonho. A crise pandémica com a sua própria quota de indeterminação e incerteza mais acentuou esse estado das coisas e rara é o aparecimento de alguém que transporte consigo uma visão de futuro mais promissora. Aparentemente, esse predomínio do negro não deixa de ser um paradoxo face às múltiplas oportunidades que a nova revolução tecnológica, com a transformação digital, a inteligência artificial e outras manifestações do que começam a ser designadas de tecnologias digitais, nos poderá proporcionar. O problema é que pelo menos a fase inicial da emergência desse potencial tecnológico nos tem trazido polarização extremada, desigualdade que torna negros os sonhos da social-democracia, nos traz fenómenos insuportáveis de concentração empresarial e de monopsónio na procura de trabalho, destruição de elevadores sociais, perpetuação e reprodução da pobreza e da marginalização. Daí que a visão de futuro tenda a ser negra, ou pelo menos largamente interrogada não sossegando ninguém interessado nesse futuro. É verdade que as perspetivas de taxa de juro a longo prazo continuam baixas apesar dos bloqueios e perturbações atuais de oferta, mas não sabemos se esse horizonte de baixas taxas de juro não anuncia precisamente o pessimismo do crescimento a longo prazo.

 

Este mais longo introito do que o habitual nos meus posts apenas serve para contextualizar melhor a minha surpresa quando ao comprar o número de dezembro de 2021 da excelente revista PROSPECT deparo com uma chamada à primeira página com o título The Economics of Hope (A Economia da Esperança). Uma leitura mais atenta da capa e do índice da revista permitiu-me compreender a aparente dissonância entre uma chamada de primeira página de uma revista anglo-saxónica prestigiada e o ambiente predominante entre os economistas. O subtítulo da capa era o seguinte: A visão de um futuro mais justo de Carlota Perez. Fiquei mais descansado. A perplexidade tinha explicação e o assunto ficava “entre os meus”, ou seja gente que compreendo, sigo, leio.

 

Mas afinal o que é que está em jogo neste aparente paradoxo. Diria que muito simplesmente na raiz da dissonância está a maneira como os economistas se situam e tratam o tempo nas suas análises. Grande parte dos contributos anteriormente referidos envolve economistas que olham para o futuro imediato das economias, coisa que não implique mais do uma meia ou uma década inteira. Recordo que quando os economistas reportam a períodos mais longos, como é o caso por exemplo de uma certa direita económica em Portugal que está a esfregar-nos na cara com as baixas taxas de crescimento das duas últimas décadas em Portugal, uma grande parte desses economistas não está atento às mudanças e transformações estruturais que a economia portuguesa experienciou mesmo nesse período de duas décadas de crescimento relativamente anémico e sem as quais não é possível compreender quaisquer taxas de crescimento, quaisquer que elas sejam. Há dias, para resolver o problema de entupimento cá em casa de uma máquina de lavar louça, a assistência da marca enviou um técnico relativamente jovem, de comportamento impecável, que trazia uma máquina de ferramentas que era simultaneamente computador, impressora e outros instrumentos de suporte administrativo, designadamente a possibilidade de pagamento por multibanco da operação. O problema foi resolvido com proeficiência, a assistência não foi barata, questão de marca, mas tive uma manifestação de que o país está diferente, neste caso provavelmente apenas com o recurso a uma qualificação intermédia ou quando muito um curso técnico de curta duração.

 

Pois, nessa maneira de integrar o tempo na economia, há os economistas especializados na leitura do tempo longo e o binómio inovação-tecnologia pode também ser lido nessa perspetiva do tempo longo, o que nos traz visões diferentes, auxiliadas pela interpretação histórica dos tempos longos do passado, sem incorrer no erro grave e fatal do determinismo.

 

Carlota Perez é uma das últimas moicanas do estudo do tempo longo, sobretudo das chamadas ondas longas de inovação e crescimento, as quais apresentam um problema que é um quebra-cabeças para todos os economistas quando o vivem temporalmente. Quando se confrontam no tempo duas ondas longas de inovação, uma que termina os seus efeitos de impulso do crescimento económico e outra, baseada em novos fatores motores, que começa a fazer sentir os seus efeitos de propulsão e a exigir mudanças sociais, institucionais e de governação e políticas públicas para consolidar o seu domínio, é extremamente difícil compreender o contexto evolutivo em que estamos mergulhados. É isto o que se passa nos tempos que vivemos, tornados obviamente mais complexos pela crise pandémica. As tecnologias digitais, com a automação e a inteligência artificial talvez à cabeça, começam a fazer sentir o seu fator de propulsão, mas a transição energética e climática veio introduzir complexidade nessa propulsão. Além disso, não é propriamente uma rotura brusca com o paradigma das TIC que se impôs nos últimos anos do século XX. E seguramente as chamadas inovações complementares no plano institucional, no mundo e no tempo do trabalho, na organização dos territórios, na formação de competências, nas políticas públicas estão ainda longe de tipificar o que a nova onda requer para se impor sobre o velho paradigma. Além disso, ainda não sabemos com rigor se o fator propulsor estará nas tecnologias digitais ou antes nas tecnologias verdes (algumas das quais são ainda uma vaga quimera, veja-se o caso do hidrogéneo) combinadas com essas tecnologias digitais. 

 

A visão otimista de Carlota Perez quanto ao futuro vem da sua perspetiva do tempo longo e da sua interpretação do que aconteceu com as ondas de inovação do tempo longo no passado. Claro que a economista de origem venezuelana é um peso pesado com o prestígio dos seus 82 anos, com vida suficiente para prolongar no tempo a herança das ideias do seu companheiro, Christopher Freeman, com quem Francisco Louçã (sim, um economista do tempo longo que a cedência aos ímpetos da política tem progressivamente afastado dessa herança) trabalhou algum tempo. Foi através da colaboração com Carlota Perez que Mariana Mazuccato chegou aos estrelado e à política industrial e de inovação europeia. É por isso um pensamento forte que nos traz esta visão de futuro mais condizente com o que será a evolução esperada de uma onda longa de inovação.

 

Mas convém não esquecer, e a entrevista por vezes dá a sensação de que Perez evoluiu para esse erro, que toda a onda longa de inovação é indeterminada e que só a poderemos interpretar com rigor a posteriori quando a sua consolidação acontecer, se acontecer. Repito, estamos ainda hoje longe de confirmar se os fatores complementares (a chamada co-evolução) irão efetivamente observar-se e se, por exemplo, na questão energética, o paradigma a substituir, o dos combustíveis fósseis ou a sua versão menos pesada do gás natural, não revelerá mais resiliência do que o esperado. 

 

Por conseguinte, embora saiba bem “os nossos”pronunciarem-se e com isso trazerem uma visão mais promissora do futuro, ainda muito gente irá viver na incerteza e na indeterminação, ou seja viver, penando ou sendo beneficiado, naquele longo momento em que o velho paradigma definha mas não desaparece e o novo tarda em confirmar a sua consolidação. E, embora a interpretação da história do tempo longo nos ajude, ele não deixa de ser por isso indeterminado e incerto, sobretudo para que os viverão a apaixonante transição.

 

Vejam entretanto alguns dos trabalhos de Carlota Perez em:  https://deeptransitions.net/deeptransitions-author/carlota-perez/.

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