(Slide da conferência de Gabriel Palma)
(O post de hoje combina três aspetos que têm bastante que ver comigo e com a minha maneira de estar na economia do desenvolvimento. O enunciado é simples: factos estilizados, desigualdade e Gabriel Palma, Professor na Universidade de Cambridge, Reino Unido, tudo isto sugerido por uma conferência deste último na London School of Economics e como sempre acessível no You Tube (link aqui). Quem sabe, sabe e a conferência de Palma é uma rara oportunidade de em pouco mais de uma hora ficarmos por dentro do modo como a desigualdade se apresenta no mundo e como a partir dessa incidência pode conceber-se uma abordagem para a compreender.
Comecemos por enquadrar a importância de Gabriel Palma (link aqui).
A economia do desenvolvimento vista pelas lentes da teoria da dependência teve a sua via sacra, penosa e marginalizadora, antes de se afirmar nos cursos de economia do desenvolvimento nas Universidades mais prestigiadas. A teoria da dependência foi vista durante largo tempo como uma espécie de braço intelectual ou conceptual das revoluções latino-americanas e do combate ideológico ao que nesse tempo se chamava o imperialismo americano. Um dos pais, inspiradores e militantes mais representativos da teoria da dependência, sobretudo da sua dimensão histórica (“history matters” na explicação do subdesenvolvimento), André Gunder Frank de que falava num dos meus últimos posts, esteve proscrito de entrar nos EUA, tendo sido afastado de toda a sua vida universitária e de investigação naquele país.
Quando na economia do desenvolvimento começou a configurar-se uma mais apurada combinação de fatores externos (a dependência da extroversão) e de fatores internos na explicação do subdesenvolvimento e do êxito diferenciado dos países na superação da armadilha do subdesenvolvimento, a teoria da dependência começou a perder a sua forte carga ideológica e começou ela a transformar-se. Por esse motivo ou simplesmente porque as academias se tornaram mais tolerantes no estudo do desenvolvimento. Palma, dois anos mais velhos do que eu, nascido em 1947 no Chile, curiosamente com formação académica na área da econometria (o que talvez lhe tenha dado uma carta de alforria mais incisiva) e posteriormente deslocado para Oxford e Cambdridge, onde concluiu a sua vida académica, já se insere nessa fase da economia do desenvolvimento em que a combinação entre fatores externos e internos contribuiu para grandes avanços na disciplina. O seu tema preferencial sempre foi o da desigualdade e o seu nome aparece ligado modernamente a um indicador de desigualdade, o chamado índice de Palma, normalmente contraposto ao velhinho coeficiente de Gini, ainda largamente usado, apesar da sua conotação com o século anterior. O índice de Palma mede o rácio entre a percentagem de rendimento apropriada pelos 10% mais ricos e a percentagem de rendimento dos 40% mais pobres. O índice limita-se a refletir a importante observação apresentada por Gabriel Palma segundo a qual os 50% de rendimento apropriado apresenta uma elevada estabilidade entre países. Ou seja, o que Palma nos pretende dizer é que o problema está nas abas da distribuição, no topo e na base.
A ideia de factos estilizados é para toda a economia, e a do desenvolvimento não foge naturalmente à regra, de grande importância, sobretudo para aquela economia que não desiste, seja ela mais ou menos formalizada matematicamente, de fornecer uma explicação da realidade. Os factos estilizados não são mais como a designação indica do que uma representação simplificada e condensada da realidade, com mais ou menos factos, sobre os quais uma teoria é válida quando é capaz de fornecer uma explicação para esses factos. Por outras palavras, uma teoria só deve ser aceite quando integra confortavelmente esses factos e isso pode ser conseguido por diferentes teorias. Como é também óbvio, esses factos evoluem historicamente, dando conta da evolução temporal e da mudança estrutural que regra geral a acompanha. Os factos estilizados mais conhecidos na economia são provavelmente os “factos estilizados de Kaldor”(Nicholas Kaldor) que desafiaram inicialmente a teoria do crescimento económico. Paul Romer e Charles Jones propuseram já mais recentemente novos “factos estilizados” para melhor refletir a importância da economia das ideias no crescimento económico.
A conferência de Palma propõe e formaliza o que pode começar-se a chamar de factos estilizados da desigualdade. Ela sistematiza dois elementos importantes das sociedades contemporâneas. Estudar a desigualdade e construir factos estilizados, regulares e estáveis, para sobre eles se construir uma teoria da desigualdade. Da importância da desigualdade temos falado abundantemente neste blogue. Ela é incontornável para compreendermos os problemas do crescimento contemporâneo e mesmo na ciência política não é hoje possível compreender o populismo nas economias avançadas sem integrar essa dimensão de análise. Tudo isto ficou mais claro quando se compreender que a desigualdade pode ser fator de constrangimento ao crescimento, estando por isso para além de uma questão de valores e da maneira como politicamente valoramos ou não a equidade.
Os factos estilizados propostos por Palma são oito:
- Quando medimos a desigualdade pelo coeficiente de Gini, ela varia muito de país para país;
- As diferenças de desigualdade são particularmente notórias nos países de médio rendimento e a desigualdade começa a aumentar nos países mais avançados com produtos per capita mais elevados;
- As diferenças de desigualdade começam a esbater-se quando passamos a ter em conta a população de cada país;
- Se dividirmos a população dos países em duas metades – a do meio e a do meio superior, conclui-se que ambas as metades tendem a apropriar uma percentagem similar de rendimento de país para país, mas no seu interior as diferenças são notórias;
- Em alguns países, a desigualdade torna-se muito elevada pelo facto dos grupos mais ricos apropriarem mais de 10% do que a outra metade;
- A desigualdade de mercado (sem políticas redistributivas) nos países de rendimento mais elevado (OCDE) está a aumentar consideravelmente;
- Há pouco que mostrar acerca desta última desigualdade;
- Para os países de médio rendimento as políticas para reduzir a desigualdade podem ser de dois tipos: redistribuição de políticas de riqueza e bem-estar e melhoria do desempenho económico.
A explicação central de Palma da desigualdade evolui no sentido de destacar a importância de fatores de luta pelo poder e pela influência nas sociedades de mercado, que desfazem por completo os princípios da concorrência perfeita e explicam como determinados conseguem por várias vias apropriar uma percentagem de rendimento incomparavelmente mais elevada do que lhe caberia num mercado equilibrado. Ou seja, a meritocracia no mercado é uma treta. A desigualdade extrema acontece porque os 10% mais ricos (em alguns países os 1% ou menos mais ricos) não só apropriam rendimento dos 40% mais ricos mas também dos grupos intermédios e médios superiores da população.
Há uma expressão que se deve a outro grande economista focado no estudo da desigualdade, Branko Milanovic, tantas vezes citado neste blogue, que sintetiza impecavelmente toda esta questão:
“A desigualdade transforma-se na luta entre o topo e a base e a desigualdade extrema é a luta entre o topo e o meio.”
Que políticas para combater estes dois fenómenos? A conferência de Palma, fundamentalmente em torno do facto estilizado nº 8, fornece pistas bem interessantes para a resposta a esta questão, matéria por exemplo fundamental para os fundamentos económicos de um novo acordo (improvável, talvez) à esquerda. Mas isso fica para outro post.
Sem comentários:
Enviar um comentário