(O tempo não é tão elástico como deveria ser e, por isso, há registos de artigos e crónica que valiam uma revisitação e foram anotados nessa qualidade e que permanecem na obscuridade dos cadernos. São consequências inevitáveis do “investigador” acidental e não sistemático e de profissão. Foi este o caso de um artigo do economista Ricardo Cabral que escreve com alguma regularidade no Público e que no passado dia 15 de novembro registei no meu radar de coisas a suscitar outras leituras e que se perdera nesse estatuto. A falta de assunto suficientemente motivador para nos dois últimos dias me confrontar com a página em branco do computador permitiu a revisitação).
O percurso de Ricardo Cabral até à sua posição atual no ISEG, em estado relativamente adiantado da sua carreira académica, foi-me indiferente até, se a memória não me atraiçoa, ao momento da elaboração do referencial económico da atuação política do PS após a saída do programa de estabilização, o que ficou conhecido por plano Centeno, que haveria de ser largamente desvirtuado na antecâmara da governação. Recordo-me que na altura figurava o nome de Ricardo Cabral entre as mentes que gravitavam em torno da sua preparação. Na altura, achei curioso que um economista que surgia referenciado pelo Bloco de Esquerda da Região Autónoma da Madeira surgisse associado ao referencial macroeconómico que enquadrava o programa eleitoral do Partido Socialista, mas recordo-me também que na altura pensei para os meus botões: mas afinal quem sou eu para estar a compreender ou justificar as adesões de outros a processos com que me identifico?
Imagino que tal como aconteceu como muitos outros, aquele conjunto de economistas foi encolhendo para um núcleo da mais próxima confiança de Mário Centeno, o que também é normal nestas coisas e por isso o nome de Ricardo Cabral marchou para zonas menos visitadas da minha memória. O interesse das suas crónicas no Público é oscilante, nelas predominando um tom de crítica global à governação atual do PS, não vindo daí qualquer mal ao mundo, pois é importante que esse espírito crítico se conserve para lucidez de todos, mesmo para os que possam ter estado mais próximos do quadro político que inspira a governação.
A crónica do Público do passado 15 de novembro despertou na altura a minha curiosidade, tendo de confessar que imaginava que o título se referia à economia portuguesa em particular. Revisitando-a agora verifico que não, que a reflexão realizada por RC tem por base análises realizadas por economistas do BCE, o que não lhe retira interesse e estímulo para outras reflexões, até porque o tema subjacente é o da produtividade, o qual é o tema “justo” para se contrapor aos cada vez mais ameaçadores sinais inflacionistas que vão emergindo na zona euro.
A produtividade aparente do trabalho (valor acrescentado gerado por unidade de emprego ou de hora trabalhada) é um dos grandes enigmas das economias avançadas e europeias também no período após a crise financeira de 2007-2008. É-o também na economia portuguesa, sobretudo quando os valores médios dos principais setores produtivos continuam a evidenciar uma letargia de crocodilo no comportamento da produtividade, sem sequer observar a ocorrência daqueles picos de energia quando o crocodilo dispara em direção a uma dada presa.
Macroeconomicamente falando, a ideia que tem predominado entre os economistas é que a produtividade do trabalho é pro-cíclica. O que é que isto quer dizer? Significa que, de acordo com algumas evidências, precocemente transformadas em lei geral, a produtividade aumenta nas expansões económicas e diminui nas recessões.
A crónica de RC chama-se, sugestivamente, “Finalmente, um choque favorável de produtividade” e tem de ser compreendida como contraponto à referida pressuposta evidência atrás referida, mobilizando resultados de investigação recente de economistas do BCE, mais propriamente Paloma Gomez-Garcia e Bela Szörfil (link aqui) que analisam o impacto do COVID-19 na variação da produtividade do trabalho.
Trabalhando dados trimestrais, os mais ajustados a uma análise relativamente contida no tempo, os autores concluem que, na zona euro, o período de manifestação mais intensa do COVID-19, com os correspondentes confinamentos à perna das famílias e das empresas, gerou uma situação macroeconómica em que a produtividade do trabalho aumentou para depois descer já em plena recuperação, embora conduzindo a um quadro em que a produtividade é cerca de 2% mais elevada do que o era antes da pandemia, mais especificamente no quarto trimestre de 2019. Estes resultados podem significar uma de duas coisas ou a sua combinação: ou a pretensa lei do caráter procíclico da produtividade é uma treta ou a crise pandémica é mesmo específica (This time is different, really it is …).
O artigo dos dois economistas do BCE é muito interessante pois é muito pedagógico sobre os caminhos e referenciais através dos quais podemos analisar o comportamento da produtividade do trabalho. Em simultâneo, embora o artigo não disserte sobre evoluções de economias específicas da zona euro, ele fornece-nos um guião válido e de relativamente fácil aplicação ao caso português, haja informação para isso.
Como os autores referem, há dois caminhos através dos quais se concretiza a evolução da produtividade do trabalho: ao nível do interior das empresas e através de processos de reafetação de recursos seja entre empresas de um dado setor ou entre setores de atividade. Os fatores que presidem a estes dois tipos de movimentações são também claros e estão já largamente estudados. No caso das variações intra-empresa, sobressaem os fatores da qualidade dos fatores de produção, os modelos e as práticas de gestão, a inovação e a adoção de tecnologia. No outro plano da reafetação de recursos avultam os processos de expansão e redução de atividade das empresas e os processos de destruição criadora à la Schumpeter, em que regra geral empresas mais produtivas substituem empresas já obsoletas (por isso não se trata de uma mera liquidação mas destruição criadora).
Começa a perceber-se melhor as vias pelas quais a pandemia tendeu a fazer aumentar a produtividade do trabalho. A transformação digital impulsionada pela pandemia, acelerando tendências já emergentes, combinada com a redução das horas trabalhadas, terá aumentado a eficiência das empresas que melhor se conseguiram ou puderam adaptar-se aos confinamentos. Claro que tendências opostas poderão ter ocorrido, como é o caso da destruição de postos de trabalho gerarem perda de competências não imediatamente supridas ou o retardamento de processos de investimento, através dos quais a inovação e nova tecnologia são introduzidos.
Mas há ainda que considerar os efeitos de realocação de recursos entre setores. Os economistas do BCE chegam a valores elevados: cerca de 30 a 40% do crescimento da produtividade agregada do trabalho foram explicados por reafectações entre setores. O que, considerando a dificuldade em transformar esses movimentos em duradouros, explicaria também a queda do crescimento da produtividade já em recuperação pandémica. E seguramente que a destruição criadora, substituindo empresas em que a transformação digital é residual por empresas que nessa transformação a sua razão de ser, acentua o efeito pandémico positivo sobre a produtividade.
Moral da história:
A estagnação ou o baixo crescimento da produtividade manifestaram-se nas duas últimas décadas como uma das manifestações mais notórias da vulnerabilidade europeia quando confrontamos os seus padrões de competitividade com os das regiões mais dinâmicas da economia global. É uma ironia trágica que o panorama se tenha alterado suportando os custos elevados de uma crise pandémica, receita indesejável para resolver um problema que tem de estar no coração da política europeia e da zona euro, sobretudo agora que os custos da transição energética e climática não produzirão a curto prazo um movimento favorável à produtividade, antes pelo contrário. Mas a pandemia acabou por fornecer um guião, não o do sacrifício da saúde das populações, mas através dos seus efeitos indiretos da adaptação à transformação digital.
As tecnologias digitais não podem ser entendidas apenas como um mundo de “nerds” lunáticos, mas como uma grande oportunidade de inovação nos modelos de negócio e na organização interna e do trabalho que recrutam, acaso as empresas compreendam o seu potencial e se capacitem em termos de gestão e de formação dos seus quadros e trabalhadores.
Nota final:
Independentemente de voltar ao tema em próximos posts, sobretudo do ponto de vista da aplicação à realidade portuguesa, um artigo de junho de 2021, de economistas ligados à Nova Economics Club da Nova School of Business and Economics, em colaboração com o GPEARI, anuncia que “de acordo com os resultados obtidos, a produtividade do trabalho das empresas portuguesas desceu 5,87% em 2020, sendo a dimensão da queda dependente de características das empresas tais como a dimensão, o setor de atividade e a dimensão de exportação”(link aqui). Não boas notícias, por conseguinte.
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