(A situação na Europa e no mundo em geral não está para velhos e para os que para lá caminham, numa espécie de crónica anunciada sugerida pelos níveis muito desiguais de vacinação hoje existentes, o que para uma economia mundial global ainda que a funcionar a meio gás no que respeita a fluxos de pessoas tenderia sempre a prolongar e a diversificar os surtos. Tudo isto sem pensar na estranha corrida em que estamos mergulhados: quanto mais a incidência se prolongar no tempo maior é a probabilidade de darmos tempo e oportunidade ao vírus para se ir transformando. E a questão tem assolado não só países democráticos “organizados” e como diria a cada vez mais assanhada Clara Ferreira Alves bons em logística, como a Alemanha, bem como países com ditaduras ou governos iliberais onde pelos vistos a logística do poder concentrado não tem sido benéfica para controlar a incidência e promover a vacinação generalizada. Por cá, talvez não tenhamos pensado (pelo menos a esquerda parlamentar) que seria possível uma crise política coexistir com o reacender da crise sanitária, mas ai estamos nós a caminhar para isso felizmente com uma taxa de vacinação que continua a ser das mais elevadas no mundo.
Tal como se verificou noutros períodos de mais intensa incidência, a velocidade a que os acontecimentos se desenrolam torna praticamente impossível a população interessada e consciente avaliar a situação e definir coerentemente o seu comportamento social. Dou comigo, por exemplo, que me considero informado e atento aos pormenores mais estruturantes, a duvidar se devo ir ver amanhã o Jorge Palma na Casa da Música ou a Maria João Pires no dia 6 de dezembro na Gulbenkian em Lisboa. Na verdade, não querendo falar em comunicação porque já me irrita solenemente a ideia de que as coisas foram mal comunicadas, porque o que afinal se trata é de boas ou más decisões políticas que vão muito além nas sociedades modernas da simples expressão escrita ou oral dessa decisão, se pensarmos bem até me admiro que a confusão não seja maior.
Vejamos, por exemplo, o caso dos reforços do processo de vacinação, terceira dose para alguns, segunda dose para outros. O modo como inicialmente a ideia foi apresentada envolvia a toma simultânea da vacina da gripe e da dose suplementar da vacina COVID-19, mas aparentemente ninguém se preocupou ou simplesmente ignorou o período que deve mediar entre a última dose e o reforço. O que tinha imediatamente a implicação de não ser possível para muitos a simultaneidade das duas tomas, como é o meu caso. Bom, o sistema decidiu e bem a inoculação com a vacina da gripe e abriu-se uma nova interrogação. Para quando o reforço da terceira dose? Racionalmente seis meses depois da segunda dose, o que atiraria no meu caso e de muita gente para Janeiro de 2022. Mas eis que senão quando alguém da Direção Geral da Saúde refere estar em estudo a possibilidade de encurtar o período entre a segunda dose e o reforço. Uma nova possibilidade, e também uma nova interrogação, se abrem. Para quando, com cinco meses de intervalo, menos, ninguém sabe. Tudo boa gente, com boas intenções, mas a verdade é que decisões desta envergadura são indivisíveis. Fazem-se de uma vez e não às pinguinhas. Mas não ficamos por aqui. Os que foram brindados com uma dose da Jansen (Johnson & Johnson) que é cada vez mais o patinho ou a patinha feia das vacinas terão reforço de dose. Quando e em que condições? Outra decisão que deveria ser indivisível e não tomada às pinguinhas.
E poderíamos falar também na desmontagem precoce e imprevidente de centros de vacinação em alguns municípios, mexendo com um sistema que funcionou quase na perfeição e ficamos sem saber a razão plausível que terá determinado decisão tão precipitada.
A DGS anda claramente a brincar com o fogo. Interrogações desta natureza combinadas com o aumento da incidência com uma taxa de vacinação elevada como a nossa teriam noutro país mais volátil a um crescimento significativo do negacionismo em matéria de vacinas. Isso só não aconteceu porque o comportamento da população portuguesa é de se lhe tirar o chapéu mas convém não abusar. Uma das condições fundamentais de transparência que tem de ser assegurada é a publicação regular e rigorosa das percentagens de vacinados que integram os universos dos que contraem COVID, dos que são internados e dos que se encontram em cuidados intensivos. Não publicar essa informação, e se ela não existe ainda é mais preocupante, só intensifica atoardas e não contribui para uma clarificação transparente sobre qual deve ser o nosso comportamento.
Valha-nos que, pelo menos até ao momento, veremos o que vai passar-se na campanha eleitoral, a pandemia não tem sido arma de arremesso político. Que a situação do SNS o vá ser, isso é normal e a clarificação democrática exige esse debate, esperemos que travado com rigor e a partir de dados reais e não de representações da situação do SNS criadas pelo Correio da Manhã e esse estilo de jornalismo da cloaca. Rui Rio tem dado o exemplo com uma postura que julgo inatacável nessa matéria. Já Rangel não estou totalmente seguro que o faça, pois frequentemente dou comigo a pensar como é que um intelectual relativamente consistente se transforma frequentemente em espirra canivetes, assumindo-se como um “fininho de espírito” quando não o é.
E não tenho receio em reconhecer essa possibilidade, não estou seguro que a gestão da pandemia não esteja a ser realizada pensando o mais possível não a transportar para janeiro de 2022 e para o período da campanha eleitoral e eleições. O problema é que a dinâmica viral não se compadece com o tempo político e pode a ele sobrepor-se plenamente, sem apelo nem agravo. Admitindo como legítima essa preocupação de não contaminar o tempo eleitoral com o da pandemia, o que não entendo é como foram tomadas decisões às pinguinhas como atrás referi. Tudo o que não constitua clarificação e represente antes pelo contrário indeterminação e incerteza tenderá a projetar a incidência para mais tarde, dando cabo do tal “ring fencing”. Por isso, clarifiquem antes de mais todo o programa do reforço de doses. Há tempo suficiente até bem antes do Natal para o fazer.
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