sábado, 27 de novembro de 2021

ALMUDENA DEIXOU-NOS

 


(Almudena Grandes era de facto uma GRANDE mulher e um cancro interrompeu uma carreira de escritora e grande comprometimento político, contagiando sempre a sua prosa com uma presença cívica e política permanente, uma escrita de causas e sobretudo uma vontade indomável de dar Voz às personagens históricas mais esquecidas ou perdedoras da história, com destaque para o seu conjunto de romances gerados no contexto da Guerra Civil espanhola em que estava presentemente mergulhada. Não consigo dissociar os romances que li, Malena é nome de Tango e Atlas de Geografia Humana, das inúmeras crónicas a que me habituei a ler no El País, como se o jornal se confundisse com a sucessão de crónicas, mesmo depois do jornal ter abdicado da distribuição em papel em Portugal e me refugiar na assinatura online).

Imagino que a escritora espanhola tenha partilhado a angústia de um cancro que se revelou sem tréguas com a tristeza decorrente da situação política espanhola à esquerda, com a qual ela manteve sempre um compromisso de militante e de estudiosa, uma espécie de historiadora forçada para povoar os seus romances da Voz que gostava de conceder aos perdedores ou aos vultos a quem nunca foi reconhecido o valor real dos seus contributos e abnegação. Nos registos que encontrei, o seu último voto comprometido foi na Izquierda Unida, uma espécie de longa mutação resistente do desaparecido PC espanhol, que vai definhando sobretudo depois da aproximação ao PODEMOS.

E talvez a melhor forma de a homenagear postumamente neste blogue do ponto de vista do leitor seja traduzir uma das suas últimas crónicas para o El País, datada de outubro de 2021 (link aqui), já a debelar-se com o cancro que a venceria:

“O Ídolo

Escrever esta palavra gera pudor, uma estranheza que roça a vergonha, mas não existe outra à altura daquele deslumbramento, o raio de luz capaz de marcar o rumo de uma vida inteira. Suponho que todas as pessoas têm ídolos, mas talvez não sejam todos igualmente importantes. Para mim, foi vital. Ler os seus livros não me concedeu apenas uma vocação, mas também um lugar no mundo. Recordo o formigueiro frenético dos meus dedos enquanto folheava as páginas, a voz que ressoava dentro da minha cabeça, isto é, isto é, isto é o que eu quero fazer … Bastava-me ter um livro seu entre as mãos para me sentir mais inteligente, mais segura, mais forte e mais feliz, como se a admiração que sentia por ele , o amor que a sua obra me inspirava, criasse uma carapaça capaz de me proteger de todo o mal. Mas para lá da adolescência, os excessos de fantasia foram-se diluindo, mas a devoção não mudou. A admiração foi amadurecendo, tornando-se mais consciente, mais exigente, enquanto escrevia os meus próprios livros e a gratidão desbordou como se fosse uma levedura mágica, porque cheguei a pensar que talvez, sem ele, não tivesse encontrado um caminho para escrever. Dá-me vergonha dizer estas coisas, mas isso era o que eu sentia. Depois, as águas começaram a ficar turvas. A torrente brava, valente, que seguia fluindo como um milagre da natureza nas páginas dos seus livros, acobardou-se em torções inesperadas no contacto com a realidade. Não há nada que reprovar, disse-me. A biografia e a literatura podem divergir, separar-se para voltarem a encontrar-se … Mas os ídolos dão lições de vida também quando são apeados. A admiração não muda, não pode mudar, porque é legítima, é impossível arranca-la sem levar com ela o nosso coração. A admiração não muda, mas para além isso está o frio, a dor húmida do abandono e esta insuportável sensação de orfandade”.

 

Dei algumas voltas à cabeça para intuir que ídolo era este e cheguei à conclusão que só poderia ser Mário Vargas Llosa.

Quantas vezes nas nossas vidas tivemos os nossos ídolos apeados e não tivemos a coragem e a arte de descrever a orfandade de que fala Almudena com a mestria e o desassombro que esta crónica nos traz?

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