segunda-feira, 1 de novembro de 2021

SOBRE A GLASGOW COP26

 


(A reunião de Roma do G20 que antecedeu a reunião de Glasgow deu o mote. Palavras generosas e até duras do anfitrião Mario Draghi, mas tudo parece que ainda não será desta que os temas do aquecimento do planeta e da ameaça de destruição da biodiversidade assumirão no discurso político e nas decisões de política pública o compromisso que a dupla emergência exigiria. Bem podem António Guterres e Sir David Attenborough oferecer-nos intervenções dramáticas, mas o tom continua a ser o de total contradição entre a dimensão das ameaças e a tibieza das respostas. E dei comigo a procurar as razões para tal absurdo, que não são substancialmente distintas das que foram levantadas pela irracional abordagem do mundo como um todo à pandemia.

Na minha modesta interpretação, estamos a viver as sequelas de um processo de globalização mal gerido. Não foi possível encontrar um equilíbrio entre as virtualidades económicas indiscutíveis do processo, retirando da pobreza uma massa significativa de população, e a gestão dos seus principais inconvenientes. Assim, a pandemia usou os mecanismos da globalização para se afirmar como tal e mostrou que havia limites irrecusáveis. Mas também o modelo de crescimento linear e depredador puxado pela dimensão económica da globalização se mostrou incompatível com a defesa do planeta e da sua biodiversidade, adensando os problemas da insustentabilidade e da ameaça climática, começando pela incapacidade de encontrar uma métrica do crescimento que tenha em conta o valor do capital natural do mundo e a necessidade de ponderar o seu declínio devastador.

Na raiz do problema, diria mesmo dos problemas, está a incapacidade do sistema multilateral que procura “governar” (enquadrar?) o mundo em gerar uma resposta eficaz e veiculadora da ideia de que é possível suster o problema. É verdade que a União Europeia tem pedalado na frente dos compromissos em matéria de redução de emissões de gases com efeito de estufa e de preservação da biodiversidade e do capital natural. Os Estados Unidos da América de Biden parecem querer evoluir no mesmo sentido, mas haverá muito que recuperar e compensar pelos efeitos da imbecilidade de Trump e do seu apego interesseiro ao mundo dos combustíveis fósseis. Uma crise energética como aquela em que estamos mergulhados é do pior que se poderia esperar para iniciar sem retorno uma transição energética inspiradora. Mas mesmo que a Europa e os EUA possam alinhar forças a verdade é que do seu compromisso pouco ou nada resultou ainda para incentivar o mundo a uma descarbonização mais efetiva.

A Foreign Affairs, uma revista americana de grande prestígio e tradição, ligada aos meios diplomáticos e da política externa americana, pede por isso aos EUA que dê os primeiros passos no sentido do que Stewart M. Patrick (link aqui) designa de “política ambiental planetária”, suscetível de uma vez por todas colocar os 195 países independentes a tocar pela mesma pauta e a encontrar os mais adequados mecanismos de perequação que apoiem alguns países a preservar autênticos paraísos da biodiversidade e a encontrar modelos de crescimento compatíveis com o equilíbrio mundial.

Tudo isto não esquecendo que a população mundial só estabilizará por volta de 2060, isto se as condições em que as estimativas de hoje são elaboradas se permanecerem adequadas.

Políticas económica e externa dos países devem ser conjugadas sob o lema do combate climático e ao declínio da biodiversidade, revolucionando o próprio conceito de soberania, na linha de que “o mundo é um stakeholder não um espectador” (Stewart M. Patrick). Necessitamos assim de uma nova métrica para o PIB e para o seu crescimento que tenha em conta o valor do capital natural e os custos da sua destruição e sobretudo novas lentes para identificar as contradições de políticas públicas onde conflituam apoios consistentes à mudança climática e apoios que reproduzem e prolongam o universo dos combustíveis fósseis.

Como tenho induzido a partir da estagnada reforma da globalização, uma política planetária terá de viver de novas ou renovadas instituições multilaterais e de um novo impulso da governação mundial. Podemos falar de avanços incipientes, dificuldades de percurso, de alguns recuos institucionais, por vezes, mas essas instituições multilaterais têm de estar lá, ser reforçadas. Só elas poderão regular a massa de investimento que é necessário realizar nos ecossistemas terrestres e marinhos para aumentar a sua capacidade de reserva de carbono.

Sabemos que avanços como a Declaração Universal dos Direitos Humanos datada de 1948 demoraram uma eternidade a transformar-se em novas peças legislativas e que nos teremos de preparar para esse tipo de trajetórias na legislação climática e da biodiversidade, já que afinal é a nossa posição no mundo que está em causa e os populismos da velha e decrépita soberania estarão à espreita.

Da COP26 em Glasgow talvez não saia o início dessa caminhada, mas, pelo menos, que se torne mais óbvia e conclusiva a sua necessidade. Avisos nos últimos tempos foram inúmeros e da mais variada natureza. Ignorar esses sinais e permanecer na retranca, entregues ao princípio do “free-rider”, os outros que comecem que depois vê-se, será obviamente algo de trágico e talvez quando os custos económicos dos desvarios sejam finalmente convincentes já será tarde.

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