(Há dias e este é um deles em que não resisto à vontade de regressar a alguns dos meus interesses intermitentes na área das ideias, fugindo por isso dos temas de preocupação profissional permanente e das próprias áreas de investigação disciplinar mais regulares. É uma forma de “espairecer” e as sextas-feiras, o dia da preparação para o envelhecimento ativo, não trabalhando profissionalmente, é regra geral o espaço para essa liberdade. Tendo ocupado a manhã com a obrigação contra a regra das sextas feiras a discutir trabalho de avaliação na área da inovação social, é tempo para a tal intermitência.
Contextualizando, devo dizer que data do início da década de 2000 o meu contacto com as ideias de “flâneur” e de “flânerie” como instrumentos de análise e observação urbana. E, como regra geral acontece nestas digressões pelos interesses intermitentes e por isso não sistemáticos, o contacto não é proporcionado pela fonte original mas uma fonte interpretativa intermédia. Foi assim também no meu caso. O meu contacto de então foi um livrinho de Ash Amin e Nigel Thrift, o primeiro que conhecia dos temas da inovação e do conhecimento tácito, chamado “Cities – Reimagining the Urban” (Polity Press, Cambridge UK, edição de 2002). Desse livrinho registou-se-me na memória uma passagem imediatamente transposta para os cadernos das passagens que valem a pena, que os autores elaboraram importando também ideias de Michael Sheringham, 1996): “As ferramentas tradicionais baseadas em mapas, descrição, emulação, destilação da essência têm uma utilidade reduzida. Ter em conta o passeante reflexivo, o flâneur, que através da imersão sensorial, emocional e de perceções nos caminhos da cidade, conduz-nos a um encontro de duas vias entre a mente e a cidade, resultando daí um conhecimento que não pode ser separado desse processo interativo” (Amin e Thrift, pp. 10-11).
A partir desta passagem e de todo o livrinho que aponta aliás para uma crítica interessante da visão do flâneur como instrumento de análise, fui reconstituindo, nas minhas intermitências, o meu conhecimento sobre a matéria, caminhando sempre que possível da fonte intermédia para as ideias originais. Foi assim que cheguei à vontade de penetrar na obra de Walter Benjamin a qual por sua vez se encontrava com a poesia de Baudelaire, sobretudo no que às perceções e vivências de Paris dizia respeito. Não vou falar destas curtas digressões por alguns poemas com a desvantagem de então não ter ainda a ajuda interpretativa de Ana Luísa Amaral no já aqui citado “O som que os versos fazem ao abrir”, às quartas feiras na Antena 2, programas que eu considero a iniciação ideal à poesia e que conhecimento tem aquela mulher, bem completada pelo Luís Caetano.
A recetividade a conhecer melhor a obra de Walter Benjamin foi muito favorecida pela minha arreigada ideia de que em matéria de ciências sociais, não das ciências básicas, vale mais a pena mergulhar nos Grandes do que gastar a nossa visão com gente menor do presente, que quando muito nos ajuda a caminhar no sentido contrário, em direção ao original.
Comecei por um conhecimento disperso de alguns textos, um dos meus favoritos é aquele em que Benjamin trata como matéria de análise o simples ato de desempacotar a sua biblioteca (“Unpacking my Library”, reproduzido no “One-Way Street and other writings”), onde tomei contacto com as ideias mais sublimes de um amante de estantes e do que está nas suas prateleiras. E também me interessaram algumas descrições do cultural e do quotidiano urbano, em que a invocação da “flânerie” é permanente.
Mas nunca me tinha atrevido a comprar e a mergulhar no imenso e avassalador THE ARCADES PROJECT. As 1.071 páginas da edição inglesa da Belknap Press da Harvard University Press começam por suscitar um problema de classificação. É uma obra incompleta? É um caderno de notas que foi crescendo até ficar numa zona de penumbra entre a obra inacabada e a obra de rotura que poderia ter sido? É simplesmente um esquisso de investigação para a produção posterior de registos literários, de análise sociológica urbana, o que quer que seja? O que sabemos pela designação é que se trata de um projeto centrado na Paris dos fins do século XIX e inícios do século XX, as arcadas, que Benjamin intuía ser a manifestação de uma nova arquitetura por sua vez antecipando mudanças que esse tempo anunciava.
Uma das características mais intrigantes e simultaneamente mais ricas do ARCADAS é a presença misturada que, por vezes, só pelo diferente tipo e tamanho de letra se consegue discernir, de citações, excertos, pequenas observações do autor, como se esses elementos começassem a dialogar entre si para que aquela amálgama de informação e perceções faça sentido e nos proporcione uma visão coerente. Claro que entre essas citações, excertos e passagens estão os registos de Baudelaire sobre as ruas de Paris.
Não é por acaso que na obra a análise de Paris, Capital do século XIX, com textos de 1935 e 1939, a análise de toda a série de Exposições dos fins do século XIX ocupe um lugar de destaque: “As exposições mundiais são lugares de peregrinação ao fétiche da mercadoria”, “glorificam o valor de troca da mercadoria”. Toda a chegada à Cidade do mundo das “commodities” é analisada com finura e aí nos reconfortamos com grande antecipação no tempo do que nos irrita solenemente nas cidades internacionalizadas, a sua doentia homogeneização. E em estreita coerência com esta perceção, não é também por acaso que Benjamin dedique parágrafos deliciosos à caracterização de algumas das figuras mais emblemáticas desse tempo. Uma delas é a figura do colecionador. Atentem nesta preciosidade:
“O interior é o asilo da arte. O colecionador é o verdadeiro residente do interior. Ele preocupa-se com a transformação das coisas. Para ele sobra a tarefa de Sísifo de desviar as coisas do seu caráter de mercadoria tomando posse das mesmas. Ele transmite-lhes apenas o valor do conhecedor e não o seu valor de uso. O colecionador sonha o seu caminho não para um mundo distante ou passado mas para um melhor – um no qual seguramente os seres humanos não são melhor fornecidos com o que necessitam no mundo do seu dia a dia, mas no qual as coisas são libertadas da enfadonha natureza de terem de ser úteis”.
Desafio-vos a encontrar uma caracterização mais sugestiva do que é um colecionador.
E, para terminar esta digressão intermitente pelo ARCADAS que me ocupará certamente até ao Natal, regresso ao tema de base do flâneur, com uma nota de Benjamin sugerida por uma estrofe de Baudelaire no poema Viagem das Flores do Mal, Mergulhar no desconhecido para descobrir o novo!:
“A novidade é uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. É a origem da aparência que pertence inalienavelmente às imagens produzidas pelo inconsciente coletivo. É a quinta essência dessa falsa consciência cujo infatigável agente é a moda. Essa aparência do novo reflete-se, tal como um espelho num outro, na aparência do para sempre recorrente. O produto desta reflexão é a fantasmagoria da “história cultural”, na qual a burguesia goza a sua falsa consciência do pleno”.
Ufa!
Porque é que não começamos a estudar a partir dos originais?
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