quinta-feira, 11 de novembro de 2021

TEMPESTADE PERFEITA

 

(Que a União Europeia está numa encruzilhada das valentes já o sabíamos. A necessidade de se afirmar na cena mundial como um bloco mais coerente quando os ventos sopram na direção do Pacífico e do seu dinamismo está ao rubro e as suas principais instituições tardam em agilizar as suas pretensões. O problema é que esse foco se mistura perigosamente com um conjunto de fogos cruzados, exigindo da União uma diversidade de escudos protetores para cujo manejamento a não agilidade das instituições não ajuda, aqui e ali com algumas pontas de ferrugem que penalizam ainda essa falta de agilidade. O post de hoje é uma modesta tentativa de ver as árvores em floresta tão densa e sob risco de implosão.

Sabemos como a Senhora Merkel apertada pela crise imigratória e de refugiados depois de ter dado o peito às balas conseguiu que a União Europeia engendrasse um trambolho de acordo com a Turquia (mas que companhia a do Senhor Erdogan!) para conter a pressão. Ao fazê-lo, embora mitigando um problema sério a curto prazo, colocou a União perante uma companhia de acordo necessariamente instável, até porque o próprio posicionamento da Turquia na cena internacional contemporânea está longe de estar estabilizado. Com esse acordo, Erdogan ganhou obviamente novos problemas internos, mas melhorou o seu naipe de cartas. E, como sabemos, regimes como o de Erdogan têm uma outra visão do que são problemas internos, pois resolvem-nos com meios de que nas sociedades democráticas não são consideradas soluções.

Quando a questão migratória parecia pelo menos contida, ou seja, grave mas sem agravamento, os populismos no centro e leste europeu começaram a sair do casulo, Orbán na Hungria mais fácil de compreender dada a sua génese conhecida e uma situação polaca, essa em meu entender bem mais grave e de muito mais difícil superação, pois surge casada com a religiosidade profunda do povo polaco, claramente instrumentalizada por um poder cada vez mais ameaçador, de um conservadorismo que temos dificuldade em compreender. Se Orbán pelo seu peculiar estilo foi o que mais se mostrou e provocou a União e as suas principais instituições, o conservadorismo polaco, com menos estrilho, começou a progredir nas suas ameaças à liberdade e hoje creio que é um problema maior do que a impetuosidade de Orbán.

Praticamente em simultâneo com esta afronta/desafio às instituições democráticas da União, o problema energético começou a adensar-se na Europa e as razões parecem-me claras. Embora a União Europeia cavalgue metas ambiciosas na abordagem à transição energético-climática, procurando liderar a caminhada para a neutralidade carbónica, a verdade é que pouco tem sido feita para manejar coerentemente a transição do paradigma fóssil para o novo paradigma. A questão agravou-se com a crise energética que atravessa os nossos dias, numa espécie de esquizofrenia da qual os europeus vão provavelmente sair-se mal: enquanto que em Glasgow, na COP, procura preparar-se com afã o futuro, há países e populações na Europa a braços com problemas sérios de fornecimento enérgico de caminho para o inverno, sobretudo com problemas sérios de preços e oferta de gás natural. E, na sua saída, Merkel deixa a posição da Alemanha por resolver em relação à sua dependência energética (gás natural da Rússia).

No meio desta tempestade, emergiu um novo personagem, um títere de Putin e Moscovo, que lidera a Bielorússia e que representa bem a variada família de personagens inclassificáveis que o desmembramento do bloco soviético e a transição para o mercado produziu, dignos de uma galeria de seres desprezáveis. Depois de se ter dedicado a usar a aviação civil para os seus intentos de prender um opositor interno, com repúdio generalizado da comunidade internacional, Aleksandr Lukashenko foi mais longe e não hesitou em usar como arma de arremesso população indefesa e na sua máxima vulnerabilidade, na antecâmara de um inverno rigoroso como sempre. A ameaça de invasão primeiro da Lituânia e depois da Polónia que a Bielorússia está a engendrar, usando a vulnerabilidade de uma massa enorme de migrantes, ultrapassa todos os limiares da decência e anuncia a barbárie no centro da Europa.

Ou seja, crise imigratória, crise energética e crise das liberdades reúnem-se numa espécie de tempestade perfeita e é no meio desta tormenta de fogos cruzados se espera a invenção de formas mais ágeis de manejamento das instituições europeias.

A metáfora que me ocorre é que estamos perante um exercício de treino não em ambiente simulado, mas antes em verdadeiro clima de guerra.

A imagem que abre este post e que fui buscar ao El País é um prodígio de humanidade na mais cruel das vulnerabilidades – uma mãe, não sabemos se é uma Mãe tamanho é o problema das crianças abandonadas nestes processos migratórios, uma Mulher amamenta com um biberão um bébé num ponto da fronteira bielorussa com a Polónia.

Ao pé desta dimensão trágica, a questão de saber se o Rio e o Costa podem entender-se ou se pode haver novos acordos à esquerda, mesmo que importante, é realmente nada face à dimensão da tragédia acima.

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