quarta-feira, 3 de novembro de 2021

UM PARÊNTESIS?

 

(Para clarificar à partida a questão, devo dizer que a ideia que por aí anda de que o acordo orçamental do PS à sua esquerda no Parlamento seria mais fácil com Pedro Nuno Santos à frente do processo do que com António Costa na liderança parece-me estar muito perto da simples idiotice. Assim sendo, julgo ser passível de crítica a pouco lúcida ideia de que a rotura à esquerda pode ser apenas um parêntesis político à espera do seu Salvador. O que eu acho é que esta malta que navega na esquerda da esquerda tem fortes deficiências na sua formação política e do marxismo parece andarem bastante esquecidos. A questão não é de parêntesis ou de interregnos, é tão só uma questão de correta avaliação das condições objetivas para o exercício da política.)

Já por repetidas vezes defendi neste espaço a ideia de que a “geringonça” foi uma resposta política ajustada a um conjunto de condições objetivas, não só da própria economia e da sociedade portuguesa, mas também do estado de alma da população mais injustiçada pelo ajustamento das dívidas soberanas, cujo nível de esgotamento estava no máximo insuportável.

Mas as condições objetivas para um acordo político de governação não são necessariamente duradouras e de feição. O mundo e a economia mundial (e a economia portuguesa está neles inserida para o bem e para o mal) geram cada vez mais volatilidade e as condições objetivas e concretas refletem essa volatilidade, esgotando-se rapidamente ou exigindo também rapidamente adaptações, senão reposicionamentos mais sérios.

O erro primeiro de António Costa foi não exigir essa reavaliação de condições objetivas e concretas às duas forças políticas no momento de busca de uma nova geringonça. Mesmo que essa avaliação objetiva tivesse conduzido à conclusão da impossibilidade de uma “geringonça 2”, essa saída teria sido preferível à atamancada solução que foi adotada, recorde-se com a conivência pelo menos do PCP, que também não fez questão de acordo escrito. A solução que conduziu à aprovação dos dois primeiros orçamentos ficou assim desprovida de uma avaliação objetiva das condições que poderiam justificar uma adaptação da geringonça com novos objetivos e vias para se materializar a aproximação entre as forças políticas em presença.

Essa insuficiência foi-se agravando com o tempo e, admito também com a pouca transparente gestão do orçamento que foi tornando mais difícil a perceção dos ganhos conseguidos com a solução. Uma situação de geringonça não se aguenta duradouramente apenas com um caderno de reposição de direitos e conquistas precocemente suprimidas por uma visão míope do ajustamento macroeconómico, que a gestão macroeconómica da pandemia na Europa e nos EUA de Biden (ainda antes do abanão de ontem na Virgínia que terá feito acordar um anestesiado Joe) veio mostrar claramente que foi errada e cruel desnecessariamente para muitos grupos sociais.

No momento em que estamos, depois da rotura consumada, é-me perfeitamente indiferente saber ou especular se o PCP ou o Bloco quiseram apenas esticar a corda e que terão ficado mito surpreendidos com ela ter rompido, projetando no solo os que a puxavam em sentidos opostos. É uma discussão inútil. Mas com o simples reatar das coisas, o que eu sei é que não se trata de nenhum parêntesis. A hipótese de geração de um novo acordo à esquerda exigirá que se corrija o erro da não avaliação objetiva das condições concretas e essa obviamente dir-nos-á que os pressupostos da “geringonça 1” estão agora ultrapassados. Como é óbvio, um acordo desse teor pode envolver ainda dimensões distributivas e de correção de desigualdades, mas não poderá deixar de se interrogar sobre a sustentabilidade do crescimento português e um acordo mínimo sobre como intervir em fatores-chave desse crescimento. Como a “geringonça 1” acabou com o tabu dos acordos de governação à esquerda, também a avaliação das novas condições concretas pode combater outros tabus, que o PCP e o Bloco se têm esforçado de manter, recusando pronunciar-se sobre alguns aspetos da sustentabilidade do crescimento económico português. E não esqueçamos que nessa reavaliação está o novo conteúdo que se pede a esse crescimento do ponto de vista do contributo para a crise climática e de biodiversidade, com temas que podem interessar a esquerda do PS como a transição fiscal para o novo paradigma económico.

Como não conheço por dentro nenhuma das três forças políticas não faço a mínima ideia se a aproximação é ou não possível. Talvez a sua impossibilidade vá permitir conhecer melhor a esclerose do PCP e do Bloco em matéria de ideias de governação e que se sintam mais felizes e à vontade com o retorno ao outro lado da trincheira, não se comprometendo com a matéria da governação. Se isso acontecer terão perdido uma oportunidade histórica de se manterem á tona num contexto político que tem arrasado umas após outras formações políticas dessa natureza, conduzindo-as à mais pura irrelevância e ao seu acantonamento em pequenos nichos de pensamento político alternativo. E o que sei também é que essa discussão política seria também benéfica para o Partido Socialista e para o equilíbrio entre as suas diferentes correntes, tendências ou simples experiências da história recente.

Os temas não faltam para matéria da tal avaliação das condições objetivas. Cito dois como simples exemplos, pois encerram matizes muito diferenciados. A política de habitação é um exemplo dos que me parece possível alguma aproximação. A saúde é um outro exemplo, mas nesse campo há uma dificuldade inicial que pode não ser transposta e matar à nascença qualquer aproximação possível. A base de discussão terá de partir da análise do que é hoje o SNS e não de meras posições ideológicas. O sistema de saúde não é hoje o que desejaríamos que fosse, mas apenas o que é. E, nesse “apenas o que é “, temos a realidade dos seguros privados de saúde e a ADSE, para apenas falar de duas das “imperfeições” face ao ponto de partida ideal.

Em síntese, uma nova aproximação à esquerda nem é uma questão de pontuação e sintaxe (parêntesis e outras figuras) nem de estilo (de liderança ou de grandes proclamações para jornalista picar). Para a tornar possível é preciso fazer o trabalho que, por preguiça ou outra vontade qualquer, não foi feito quando a “geringonça 1” feneceu. E convém não esquecer que é trabalho pesado e não necessariamente conducente a bons resultados. Pode falhar.

Para memória futura.

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