(Ao terceiro domingo de cada mês, nos jardins que ladeiam o rio Coura pela sua margem esquerda, em Caminha, mesmo antes da ponte, tem lugar uma feira de velharias que depois de uma larga interrupção pandémica regressou já há algum tempo à sua atividade. É um evento curioso, estranhamente organizado e regulado por gente com ligação à Galiza, vá lá saber-se porquê, e vale a pena uma visita regular como campo de observação de modos de vida, gente diferente, curiosidades, inutilidades, despojos do passado que aguardam uma nova utilidade e um valor de uso, exemplos de algum colecionismo e a oportunidade para se preencher o resto de manhã ou um pedaço da tarde de domingo.
A procura é muito diversificada e este vosso Amigo vai por curiosidades de livros, hoje comprei uma edição de Molière (Les femmes savantes) de 1952, um compacto do teatro de Lorca (Teatro Selecto), um livro de ensaios em que descobri uma crónica de Vásquez Montalbán sobre comunicação nas sociedades de massas e um livrinho com um ensaio de Zizek (Mes blagues – ma philosophie), das Presses Universitaires de France (de tão saudosas recordações parisienses) ainda em catálogo, datado de 2014 e com o preço de venda de 14 euros, tudo por menos de 10 euros, o que diz bem do baixo valor de uso que o mercado dá aos livros.
Mas a feirinha de velharias é um montão de diversidades. Brinquedos muitos brinquedos, pequenos automóveis, selos, pins, postais, relógios, canetas e outros domínios para colecionadores (os tais que substituem o valor de uso pelo valor do conhecedor), alfaias agrícolas variadas, despojos de serralharia convidando os especialistas de economia circular a prolongar vidas úteis de objetos e de ferramentas, roupa usada, regra geral muito indiscriminada e difícil de datar, cerâmica antiga como ânforas de encantar que implicam mais de 250 euros podendo chegar aos 500, alguma ourivesaria, cerâmica que já passou pelas nossas casas e dos nossos avós, pelo menos, algumas peças de mobiliário, tecidos de linho e muitas outras coisas que a minha observação ignorou e por isso sou incapaz de mencionar. Uma amálgama de coisas que exige olhar preparado para identificar o que é diferente e há, nem sempre diga-se, coisas que são diferentes e que justificam a tentação.
Percebe-se pela multiplicação de eventos desta natureza que o mundo dos recicladores está em crescimento. Há dias passei vindo de Lisboa pelas Caldas da Rainha e visitei o evento anual que por lá se realiza e fiquei espantado pela dimensão da oferta.
Mas diria que mais interessante do que os objetos em busca de uma redescoberta de valor de uso ou pelo menos de valor de conhecedor é a diversidade de quem os vende. O panorama é de facto muito diverso. Mas o que me interessa é que ali estão modos de vida e de estar, aguentando-se na vida, que a nossa perceção de urbanos inveterados tem por vezes dificuldade em identificar. Lá estão senhoras que apenas com a exposição de um pequeno conjunto de peças aproveitam para um domingo em que pelo menos vêm gente, com quem travam um diálogo aqui e ali. Mas também estão recicladores profissionais que retardam a ida para o lixo indiscriminado de objetos particulares, gente que passou pela ourivesaria e pela joalharia e que talvez procure uma alternativa ou uma ilusão que permanecem no negócio, pequenos empresários de produção de miniaturas, colecionadores, gente especializada em compras por grosso que procura um mínimo de retorno para o seu investimento ou simplesmente vendedores de velharias, desconhecendo se é profissão estatisticamente reconhecida. Alguns estrangeiros marcam presença, presumo que oriundos seja da Galiza, seja de paragens próximas, em que fixaram residência.
Dizem os especialistas que a gente mais conhecedora como antiquários ou colecionadores mais exigentes visitam a feira a horas mais matutinas para escolher o melhor. Nunca tive a pachorra de experimentar essa perceção, já que quando abro as venezianas que me proporcionam a vista sobre o Coura e do lado de lá do rio se me oferece a sombra difusa da feira. regra geral já são horas em que os verdadeiros “connaisseurs” já terão demandado as bancas e terão escolhido as suas peças de caça.
E assim com esta sazonalidade lá se vai enganando a vida.
(Correção de gralhas no 2º parágrafo em 22.11.2021)
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