terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

EVIDÊNCIAS DA NOSSA PRODUTIVIDADE

A OCDE tem vindo a desenvolver um trabalho notável em sede de medida da produtividade do trabalho e da sua comparabilidade inter-países, diga-se aliás com incursões metodológicas múltiplas e dignas de uma cuidada avaliação de pertinência e respetivas consequências. Recorro hoje a dois quadros nacionalmente elucidativos na matéria: (i) o primeiro para evidenciar quanto é falaciosa a ideia de que em Portugal se trabalha pouco e menos do que no resto da Europa ou do mundo desenvolvido ― como se pode constatar no gráfico mais acima, o nosso país ocupa o 12º lugar entre 36 membros da referida organização no tocante ao número médio de horas anuais trabalhadas por trabalhador (sendo curiosamente a Alemanha o país com o valor médio mais baixo registado pelo indicador em causa); (ii) o segundo para confirmar quanto Portugal compara mal em termos de produtividade do trabalho com a maioria dos 39 países de que a OCDE disponibiliza informação e considerados no gráfico imediatamente acima (32º lugar, apenas à frente da Hungria e da Grécia no que toca aos congéneres europeus).


Por fim, e para uma perceção evolutiva no tempo, atente-se no gráfico seguinte no sentido de deixar clara a nossa tendencial estagnação no presente século (bem acompanhados pela Espanha e pela desgraça grega, mas visivelmente em perda relativamente a um conjunto de 8 novos Estados-membros da Europa Central e Oriental que, partindo de mais de vinte pontos percentuais inferiores, chegam aos nossos dias com mais de seis pontos percentuais superiores a nós) ― aqui fica a transposição lógica da armadilha do rendimento médio que envolve países europeus como Portugal na impertinência de um stuck in the middle que não parece facilmente contornável, ademais quando escasseia a dimensão das escolhas estratégicas imprescindíveis.


(Elaboração própria a partir de https://stats.oecd.org)

O QUE PENSA HABERMAS DE UM ANO DE AGRESSÃO RUSSA?

 

(Um ano e alguns poucos dias de invasão e agressão russas e de forte resistência ucraniana, agora que a guerra parece concentrar-se numa frente de cerca de 1.300 quilómetros, na região oriental de Donetsk e no sul da Ucrânia, tem sido tempo de sínteses, de revisão da matéria dada, mas com reduzidos pontos de interesse do ponto de vista da novidade das ideias e das análises. Poderá falar-se da mais recente interpretação fornecida pelo intelectual francês, Bernard Henry-Levy, que fala do, em seu entender, objetivo último de Putin, a destruição e enfraquecimento das democracias ocidentais, por ele identificadas como fonte da degenerescência dos valores. Mas o que me atraiu mais a atenção foi a defesa de Habermas do momento atual como a altura ideal para negociar a paz. Eu sei que Habermas é muito provavelmente o maior filósofo vivo e marca incontornável do pensamento contemporâneo, mas sinceramente não sei se compreendi bem o seu apelo publicado em alguns jornais europeus, do qual tomei conhecimento pela versão em castelhano publicada no El País no dia 19 de fevereiro de 2023, link aqui.)

O ponto de partida do controverso apelo de Habermas é o pedido realizado por Zelensky de fornecimento de tanques Leopard, a que se seguiram imediatamente outros pedidos, envolvendo aviões de combate, mísseis de maior alcance, barcos de guerra e submarinos. O absurdo da questão, diz Habermas, é que esses pedidos são simultaneamente dramáticos e compreensíveis dada a situação da Ucrânia vítima de uma agressão bárbara contrária ao direito internacional e que volta a querer impor pela força o redesenho das fronteiras no leste europeu. O filósofo alemão entende como sendo normal a vasta audiência e aceitação que esses pedidos despertaram no Ocidente e, já não à luz do seu pensamento mas da tese de Henri-Levy, quanto mais claro for a interpretação dos objetivos últimos de Putin focados na destruição das democracias ocidentais, mais provável será a aceitação generalizada das solicitações de defesa dos ucranianos.

Habermas chama a atenção para a progressiva disseminação, inclusive nas hostes do Partido Social-Democrata alemão, não propriamente no entorno próximo de Scholz, da ideia de que é necessário vencer o medo de derrotar Putin e a Rússia nesta invasão. Enquanto pacifista, embora reconhecedor da gravidade da agressão russa, Habermas interpreta a evolução da opinião política na Alemanha como um sinal do crescimento do pensamento mais belicista face a uma elevada percentagem de alemães com dúvidas sobre esse belicismo interno.

O que Habermas sustenta no seu controverso apelo é a convicção de que a justeza do princípio de que “a Ucrânia não pode perder a guerra” não deve ser justificação para não iniciar um esforço relevante e preventivo de início de negociações, por mais complexas e por agora indeterminadas que elas se apresentem. O absurdo da questão, e a guerra é sempre absurda, é que embora o ocidente tenha razões suficientemente fortes e justificadas para responder positivamente aos pedidos de ajuda dos Ucranianos, a verdade é que quanto mais relevante e avançado for esse apoio mais o ocidente se torna envolvido e co-responsável pelo curso da guerra e suas consequências de destruição.

É neste ponto que o apelo de Habermas se torna controverso e perigoso, já que rapidamente e se não estivermos atentos o argumento pode evoluir para uma forma de proteção desavergonhada do infrator Putin. Mas sou sensível à ideia de que a partir do momento em que a ajuda à Ucrânia começa a assumir variantes de fornecimento do material de guerra mais moderno, numa zona em que se torna difícil distinguir entre o que é material defensivo e ofensivo, o argumento de que o governo ucraniano deve ser o único a definir o calendário e o objetivo das possíveis negociações pode transformar-se num obstáculo sério a um mais rápido desenvolvimento de negociações.

Podemos chegar a um ponto em que o ocidente fique na difícil posição de considerar-se parte ativa na guerra ou de aceitar uma possível superioridade no terreno. E não estou a referir-me ao célebre artigo 5º da NATO, a propósito do qual se espera que a loucura de Putin não chegue ao extremo de atacar um país membro da NATO.

Habermas desenvolve o argumento de que o Ocidente tem os seus próprios e interesses e que por isso não pode entregar apenas ao governo ucraniano a responsabilidade do prolongamento da guerra com as consequências que isso acarreta. Começam aqui as minhas grandes dúvidas sobre o apelo de Habermas. Em primeiro lugar, são os Ucranianos que sofrem na pele as consequências da devastação da guerra, são que eles que morrem, que ficam sem as suas casas e com as suas Cidades destruídas e que são obrigadas à migração forçada. Comparar as atrocidades vividas pelo povo ucraniano geradas por uma invasão e agressão do exterior com as dificuldades indiretas do povo europeu é uma prova de mau gosto. Em segundo lugar, a evolução do pensamento de Putin, ou melhor, a sua mais completa explicitação pode aproximar irremediavelmente os interesses do Ocidente e dos ucranianos.

E, pior do que tudo, a evolução do conflito pode evoluir para um ponto de sem retorno de uma ajuda cada vez mais comprometida e avançada à Ucrânia. É que não sendo belicista ainda não pressenti a existência de qualquer via que, por mais remota que seja, explicite um racional de negociações de paz que não favoreça despudoradamente o infrator. E o apelo de Habermas não fornece também essa visão necessária. Limita-se a ser um apelo generoso, com alguma lógica e argumentação, mas inconsequente do ponto de vista do racional das negociações.

O que significa que nem os pensadores mais lúcidos conseguem nos fornecer uma perspetiva de esperança com alguma solidez.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

GUARDA UM CRAVO PARA O LULA...

 

João Gomes Cravinho (JGC) tem estado demasiado na berlinda para o que é habitual e aceitável num ministro dos Negócios Estrangeiros. E os assuntos em causa têm-se apresentado como de diversa ordem (e até gravidade), desde alguns vindos do seu passado de ministro da Defesa mas que o colocam muito mal considerado em termos de capacidade e transparência de gestão de dinheiros públicos e de avaliação da competência dos recursos dirigentes por si tutelados (as derrapagens no Hospital Militar de Belém, o desinteresse e as omissões em relação ao facto e a posterior nomeação do responsável pelas mesmas para outro cargo público de direção) até outros de natureza mais pessoal mas também contendo elementos de estranheza e algum potencial de presença de conflitos de interesses ou de pequenos aproveitamentos de poder, passando ainda por infelizes e pouco corretas prestações públicas e na Assembleia da República.

 

A última inconsistência de JGC foi uma gafe cometida a propósito da alegada presença do presidente brasileiro Lula da Silva na próxima cerimónia do 25 de abril no Parlamento, facto que anunciou com assumida naturalidade sem que o mesmo tivesse sido previamente discutido e decidido pela própria instituição nos termos do respetivo regimento ― um incidente que poderá parecer menor a alguns, embora não o seja de todo em termos de cumprimento formal mínimo das regras democráticas em vigor, e que em qualquer caso não deixa de ser bem revelador de uma inconcebível inexperiência/imaturidade política ou, pior, de uma distração só provavelmente explicável por uma certa soberba e sensação de impunidade no exercício do poder.

 

Dito isto, sublinhe-se que o tema em si é também polémico, sobretudo na medida em que saudar uma presença de Lula na Assembleia da República (como fazem, e bem, os partidos à esquerda do nosso espetro político) não pode ser entendido como podendo equivaler a incluí-lo no centro de uma cerimónia nacional de alta importância simbólica como é a da celebração do 25 de abril de 1974, ou seja, da Liberdade. Tenho efetivamente as mais sérias dúvidas de que um qualquer país autoconfiante e em situação de normalidade, leia-se menos desorientado do que o nosso na fase que atualmente atravessa, aceitasse misturar planos e formatos ao serviço de um dignatário internacional, por muito relevante e próximo que este fosse (sendo que Lula e o Brasil são e não são, como reconhecidamente se sabe e não importará aqui explorar mais detalhadamente). Sobre a posição do PS e do Governo estamos falados porque quase tudo está dito quanto ao fim de regime que resolveram antecipar; mas importará perceber, entretanto, o que irá Marcelo dizer/fazer em relação ao tema, mais não seja através do pedagógico uso da sua permanente palavra de comentador residente de todos os canais nacionais e respetivos arredores.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

UM BOM MOMENTO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DA POLÍTICA PÚBLICA

 


(Tal como o anunciei no meu último post, a manhã de sexta feira 24 era dedicada à apresentação dos resultados da avaliação intercalar do Programa Operacional Capital Humano 2014-2020 que tive o prazer de coordenar. Os eventos organizados por este Programa Operacional são conhecidos pela qualidade da sua organização, sobretudo a partir do momento em que a divulgação das suas atividades e resultados é realizada em cooperação com o Jornal Público. Assim foi o de hoje, com a particularidade de toda a organização do evento (condução da reunião, animação musical, catering para um porto de honra, som e imagem) ser de responsabilidade de jovens diplomados de cursos profissionais apoiados pelo Programa. Numa atividade dura e complexa como a avaliação, poder comunicar resultados em público, perceber que o poder de decisão política está atento aos resultados da avaliação e participa ativamente no evento a eles dedicado e sentir que a qualidade do trabalho é reconhecida acaba por mitigar todas as dificuldades de um exercício desta natureza. Além disso, é muito retribuidor sentir que se partilha um momento de prestação de contas de política pública, um passo seguro em direção à accountability dos processos. É neste tipo de momentos que tenho a perceção de que o mundo vivido num dia como o desta sexta-feira está em total não sintonia com o mundo construído a nível mediático em torno da aplicação dos Fundos Europeus em Portugal, embora deva reconhecer que a realidade transmitida por este Programa Operacional reúne o que de melhor pode ser encontrado na gestão de Fundos Europeus.)

A presença de dois ministros, Mariana Vieira da Silva e João Costa e um Secretário de Estado (do Trabalho) Miguel Fontes, ilustra a atenção que a apresentação dos resultados do Programa suscitou junto do poder político. A perspetiva do avaliador é de reafirmar a esperança que a implementação do novo Programa Operacional Demografia, Qualificação e Inclusão possa pelo menos refletir sobre algumas das recomendações da avaliação, num contexto novo em que as questões das qualificações e da inclusão estão reunidas num só Programa, aumentando o desafio de dar sequência à massa de recursos financeiros que ele representa no PT2030 (o maior Programa em termos de alocação de recursos).

O debate que o painel moderado por Manuel Carvalho permitiu lançar (com presenças da UGT, Confederação de Comércio e Serviços, Planapp e Conselho Nacional de Educação representado pelo seu presidente professor Domingos Fernandes) trouxe essencialmente duas grandes questões:

§  Uma questão que converge bastante com a conclusão da avaliação de que a qualificação do Sistema de Educação e Formação deve partir agora de um novo estádio de organização do mesmo em que o ensino profissional ganhou uma outra expressão e que o Professor Domingos Fernandes colocou de uma forma muito original – o secundário está a ganhar uma nova identidade em Portugal, sobretudo a partir do momento em que está finalmente definido o que o diplomado com o ensino secundário, seja nos cursos científico-humanísticos, no ensino profissional ou no ensino artístico especializado, deve saber e ser capaz de fazer;

§  Uma outra questão que não está nem tanto relacionada com resultados da avaliação, mas que é um tema caro na minha reflexão – o que é que explica que, perante a melhoria avassaladora das qualificações observada no país sobretudo nas duas últimas décadas, o desempenho económico nacional (crescimento, produtividade, desempenho das empresas) fique tão aquém do esperado?

A primeira questão é crucial e converge em absoluto com a conclusão da avaliação de que o PO Capital Humano teve um contributo relevante para a qualificação do sistema de educação e formação do ponto de vista da redução das taxas de insucesso, retenção e abandono, mas que agora é necessário traduzir e operar numa outra realidade – a de um sistema com outras características, em que o ensino profissional é claramente a nova realidade, mas em que falta dar ao ensino artístico a expressão que ele merece até para responder de forma mais completa e integrar ao que espera de um jovem com a formação do secundário, qualquer que seja a via escolhida, a científico-humanística, a profissionalizante ou a artística.

A segunda questão, levantada inicialmente pelo representante da UGT, José Luís Presa, e posteriormente retomada pelo Manuel Carvalho na moderação, permitiu-me uma intervenção complementar, orientada em torno da minha metáfora favorita, a da gastronomia, que não é essencialmente minha, mas que adaptei a partir de uma incursão também metafórica do Nobel Paul Romer sobre o crescimento económico. Expressou este Vosso Amigo que a melhoria avassaladora das qualificações na sociedade portuguesa equivale à melhoria de qualidade considerável de um ingrediente para confecionar múltiplos menus gastronómicos. Mas a arte da gastronomia não reside apenas na escolha da qualidade dos ingredientes. A verdadeira arte da gastronomia é a capacidade, engenho ou intuição de combinar a melhoria desse ingrediente com outros ingredientes necessários. Ora, o que se depreende do observado em Portugal é que as empresas, as organizações em geral e a governação ainda não conseguiram produzir as combinatórias desejáveis para que o esperado aumento do desempenho económico reaja positivamente à, repito, avassaladora melhoria das qualificações. E referi também que a duração do gap temporal em que a melhoria das qualificações coexista com desempenho económico inferior ao esperado é um fator crítico. Um desvio temporal demasiado prolongado no tempo fará com que parte dessa melhoria sensível das qualificações vá beneficiar outros países, já que os jovens mais qualificados encontrarão oportunidades e remunerações na economia global. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado, pois para uma economia de pequena e média dimensão como a nossa, apostada na abertura ao exterior, essa abertura não tem apenas um único sentido.

Dir-me-ão que a melhoria de qualificações produziu essa melhoria de desempenho noutros países. Sim, embora não também imediatamente. Mas regressando à metáfora, nesses outros países, que partiram de défices de qualificações bem mais baixos, existem outros chefs, outra organização e capacidade que apressa a verificação das tais combinatórias do mais elevado desempenho. Por cá estamos a fazer tudo ao mesmo tempo, incluindo a formação de chefs cada vez mais talentosos.

Faço-me entender?

Nota final:

Este texto era para ser concluído no Intercidades das 22 que parte de Santa Apolónia, depois de um merecido jantar de avós com netos, filho e nora. Esqueci-me que o material circulante do IC não é o do Alfa e que a bateria do portátil precisava de ser carregada.