(Mariel Hemingway muitos anos depois de Manhattan)
(A explosão de
liberdade pela denúncia de casos de assédio sexual e seus derivados mais
ofensivos marcou com epicentro nos EUA o ano de 2017, simbolicamente
representado no movimento #ME TOO. Para além da cerimónia de impacto dos Globos
de Ouro, vi-me nos últimos
dias a revisitar alguma cinematografia e nada melhor do que um longo artigo de
Claire Dederer no El País de 9 de janeiro para sistematizar algumas impressões
que se formaram no meu espírito.)
As sombras de uma Hollywood oculta tornaram-se nos últimos tempos mais
negras à medida que as múltiplas denúncias de situações e casos de assédio
sexual como manifestação de poder opressivo se foram multiplicando. A
interrogação de quem mais forçou a barra dessa opressão foi-se instalando e, um
a um, alguns nomes com que nos identificamos do ponto de vista artístico foram
emergindo. O negro predominante na noite dos Globos de Ouro é provavelmente uma
encenação muito americana, mas ninguém pode ignorar o seu impacto e o que
significa enquanto despertar da mulher para o não encobrimento destas
situações. Não é coisa que uma perspetiva distanciada da natureza humana não
pudesse antecipar. Mas o que parece mais odioso é a mistura do assédio com
estratégias de poder em organizações não escrutinadas.
Nestes dias de desvario viral cá por casa, revi alguma cinematografia e lá
me caíram na rifa alguns Woody Allen, designadamente Manhattan
e Tudo Pode Dar Certo. A minha relação com
este blogue apoia-se sempre no aproveitamento das circunstâncias e da
confluência de leituras que me surgem no tempo certo, como se alguma ordem
oculta me ajudasse a resolver a angústia perante a folha branca (bons tempos,
agora o écran do PC ou do IPAD). Pois, como sempre, enquanto assistia à
multiplicação dos nomes atingidos pela força da libertação do ME TOO, lá me
chegou à leitura um artigo poderoso de Claire Dederer no El País (link aqui), que colocava
no título algo que andava a remoer já há alguns dias. De facto, comecei a
intuir que seria necessário rever toda a nossa galeria de contemplação e
usufruição artísticas, perguntando-me se a apreciação dessas mesmas obras
mudaria com as revelações que vão chegando e a procissão ainda não terá saído
do adro.
O artigo de Dederer vai ao fundo dessa questão: “o que
fazer da arte produzida por homens monstruosos?”. Por outras
palavras, Dederer interroga-se se a nossa relação com maravilhas artísticas
criadas por artistas que disseram ou fizeram algo de horrível tenderá a
alterar-se, ou direi eu, se devemos resistir a essa forma de contextualização
da arte? A minha primeira impressão acerca deste tema tende para considerar que
a nossa fruição artística nunca mais seria a mesma se, a todo o momento,
tentássemos contextualizar o que lemos, vemos ou ouvimos em função da vida
real, mais ou menos perturbada, dos seus autores.
Dederer escreve sobretudo em torno de Roman Polanski e Woody Allen, o
primeiro irreversivelmente ligado ao caso de violação e o segundo à sua relação
com a filha de Mia Farrow, Soon-Yi Previn, quando esta era ainda uma
adolescente. Curiosamente, Dederer considera Allen mais monstruoso do que
Polanski (vá lá saber-se o critério) e confessa que o relacionamento sexual de
Woody com Soon-Yi foi por ela considerado uma espécie de traição pessoal. Curiosamente,
Manhattan é para Dederer a prova de fogo do seu relacionamento com um autor com
quem se identificava, o veredicto final sobre se a obra de quem considera ser um
monstro vale a pena continuar a ser vista com os mesmos olhos.
Revendo Manhattan, não pude deixar de me recordar do assunto Soon-Yi quando
Woody Allen filma o rosto da neta de Hemingway, Mariel Hemingway, no seu
imortal papel da adolescente Tracy. Para mais, em contextualização mais recente,
o ambiente na família de Mariel, mais propriamente o relacionamento entre o seu
pai e as suas duas outras irmãs, era tudo menos puro (link aqui de 2013). A própria
Dederer oscila quando se remete à interrogação. “Que fazemos
com os monstros? Podemos e devemos amar as suas obras? Todos os artistas
ambiciosos são monstros? E em voz muito baixa: serei eu um monstro”
Não sei se escaparei à classificação de Dederer. Mas a releitura de Manhattan
fi-la resistindo a tudo isso. De certa maneira, “Tudo pode dar certo”, uma obra
menor face a Manhattan retoma o tema, quando Melody (Evan Rachel Wood), a jovem
do Mississipi, invade com a sua inocência, incultura e alegria de viver
contagiante o cinismo do físico Boris Yelnicoff (Larry David).
Em resumo, admito que, face aos desvarios e monstruosidades dos seus autores,
algumas obras possam ficar esquecidas no armazém da nossa memória. Mas se as
revisitarmos parece-me um desperdício de tempo contextualizá-las invocando as dimensões
do comportamento dos seus autores na vida privada. Não me parece uma tarefa épica
e gloriosa reescrever a história da arte com esse material.
Nota final: para complicar tudo, a minha diva Deneuve assinou um manifesto contra o puritanismo sexual, publicado em França (link aqui).
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