terça-feira, 9 de janeiro de 2018

TAMBÉM TU?

(Mariel Hemingway muitos anos depois de Manhattan)



(A explosão de liberdade pela denúncia de casos de assédio sexual e seus derivados mais ofensivos marcou com epicentro nos EUA o ano de 2017, simbolicamente representado no movimento #ME TOO. Para além da cerimónia de impacto dos Globos de Ouro, vi-me nos últimos dias a revisitar alguma cinematografia e nada melhor do que um longo artigo de Claire Dederer no El País de 9 de janeiro para sistematizar algumas impressões que se formaram no meu espírito.)

As sombras de uma Hollywood oculta tornaram-se nos últimos tempos mais negras à medida que as múltiplas denúncias de situações e casos de assédio sexual como manifestação de poder opressivo se foram multiplicando. A interrogação de quem mais forçou a barra dessa opressão foi-se instalando e, um a um, alguns nomes com que nos identificamos do ponto de vista artístico foram emergindo. O negro predominante na noite dos Globos de Ouro é provavelmente uma encenação muito americana, mas ninguém pode ignorar o seu impacto e o que significa enquanto despertar da mulher para o não encobrimento destas situações. Não é coisa que uma perspetiva distanciada da natureza humana não pudesse antecipar. Mas o que parece mais odioso é a mistura do assédio com estratégias de poder em organizações não escrutinadas.

Nestes dias de desvario viral cá por casa, revi alguma cinematografia e lá me caíram na rifa alguns Woody Allen, designadamente Manhattan e Tudo Pode Dar Certo. A minha relação com este blogue apoia-se sempre no aproveitamento das circunstâncias e da confluência de leituras que me surgem no tempo certo, como se alguma ordem oculta me ajudasse a resolver a angústia perante a folha branca (bons tempos, agora o écran do PC ou do IPAD). Pois, como sempre, enquanto assistia à multiplicação dos nomes atingidos pela força da libertação do ME TOO, lá me chegou à leitura um artigo poderoso de Claire Dederer no El País (link aqui), que colocava no título algo que andava a remoer já há alguns dias. De facto, comecei a intuir que seria necessário rever toda a nossa galeria de contemplação e usufruição artísticas, perguntando-me se a apreciação dessas mesmas obras mudaria com as revelações que vão chegando e a procissão ainda não terá saído do adro.

O artigo de Dederer vai ao fundo dessa questão: “o que fazer da arte produzida por homens monstruosos?”. Por outras palavras, Dederer interroga-se se a nossa relação com maravilhas artísticas criadas por artistas que disseram ou fizeram algo de horrível tenderá a alterar-se, ou direi eu, se devemos resistir a essa forma de contextualização da arte? A minha primeira impressão acerca deste tema tende para considerar que a nossa fruição artística nunca mais seria a mesma se, a todo o momento, tentássemos contextualizar o que lemos, vemos ou ouvimos em função da vida real, mais ou menos perturbada, dos seus autores.

Dederer escreve sobretudo em torno de Roman Polanski e Woody Allen, o primeiro irreversivelmente ligado ao caso de violação e o segundo à sua relação com a filha de Mia Farrow, Soon-Yi Previn, quando esta era ainda uma adolescente. Curiosamente, Dederer considera Allen mais monstruoso do que Polanski (vá lá saber-se o critério) e confessa que o relacionamento sexual de Woody com Soon-Yi foi por ela considerado uma espécie de traição pessoal. Curiosamente, Manhattan é para Dederer a prova de fogo do seu relacionamento com um autor com quem se identificava, o veredicto final sobre se a obra de quem considera ser um monstro vale a pena continuar a ser vista com os mesmos olhos.

Revendo Manhattan, não pude deixar de me recordar do assunto Soon-Yi quando Woody Allen filma o rosto da neta de Hemingway, Mariel Hemingway, no seu imortal papel da adolescente Tracy. Para mais, em contextualização mais recente, o ambiente na família de Mariel, mais propriamente o relacionamento entre o seu pai e as suas duas outras irmãs, era tudo menos puro (link aqui de 2013). A própria Dederer oscila quando se remete à interrogação. “Que fazemos com os monstros? Podemos e devemos amar as suas obras? Todos os artistas ambiciosos são monstros? E em voz muito baixa: serei eu um monstro

Não sei se escaparei à classificação de Dederer. Mas a releitura de Manhattan fi-la resistindo a tudo isso. De certa maneira, “Tudo pode dar certo”, uma obra menor face a Manhattan retoma o tema, quando Melody (Evan Rachel Wood), a jovem do Mississipi, invade com a sua inocência, incultura e alegria de viver contagiante o cinismo do físico Boris Yelnicoff (Larry David).

Em resumo, admito que, face aos desvarios e monstruosidades dos seus autores, algumas obras possam ficar esquecidas no armazém da nossa memória. Mas se as revisitarmos parece-me um desperdício de tempo contextualizá-las invocando as dimensões do comportamento dos seus autores na vida privada. Não me parece uma tarefa épica e gloriosa reescrever a história da arte com esse material.

Nota final: para complicar tudo, a minha diva Deneuve assinou um manifesto contra o puritanismo sexual, publicado em França (link aqui).

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