quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

HAAS ESTÁ PELO PORTO



Fico a dever à atenta amabilidade de Paulo Sarmento e Cunha (PSC), o dinâmico e eficaz diretor-geral da Casa da Música, o alerta que me levou à extraordinária audição de In Vain – uma criação do compositor austríaco Georg Friedrich Haas (o “maior compositor vivo” estava na sala e está em residência na Casa) que é já considerada uma das obras do novo milénio reconhecidas como incontornáveis – pelo Remix Ensemble excelentemente conduzido por Peter Rundel. Para alguém que, como eu, não passa de um melómano amador, a experiência teve uma dimensão simultânea de fascínio e de estranheza – sonoridades inovadoras e imprevistas, efeitos de luz em estreita ligação com a música (chegando mesmo à execução de algumas partes em completa escuridão – “desejo emocionar as pessoas com a minha música, e isso funciona melhor e de maneira mais poderosa e intensa no escuro” e “o ouvido fica mais atento e o ouvinte entrega-se muito mais ao som”, explica Haas), uma dominante sensação de arrastamento e bem-estar.

A obra em causa foi, aliás, escolhida por 100 das mais influentes personalidades da música contemporânea como a obra mais bela do século XXI (ver acima a página da revista “Classic Voice” que o evidencia). Como se podia ler no site, e citando uma descrição da mesma pelo “New York Times, trata-se de “ondas de sons lindos e opulentamente estranhos que parecem o resultado de forças sobrenaturais”, tornando difícil acreditar que todos aqueles sons provinham de instrumentos acústicos e não de eletrónica. Também o nosso já bem conhecido Daniel Moreira deixa, no programa de sala, os seguintes três apontamentos complementarmente relevantes:

· quanto aos desafios colocados por aquela opção de Haas: “ao público, por exigir dele um maior nível de concentração, já́ que não dispõe da habitual capacidade de aliar a escuta ao estímulo visual (para além de poder ser desconfortável – ou até assustadora – a ausência de luz); aos intérpretes porque não podem ler as pautas nem comunicar visualmente (em particular, havendo maestro, deixa de ser possível aos músicos segui‐lo); e isto mostra que a penumbra coloca também um desafio especial ao compositor: tem de escrever música que seja suficientemente fácil para os músicos memorizarem e que não exija a coordenação de um maestro ou de sinais visuais partilhados entre os intérpretes”;

· quanto ao significado desta narrativa musical, e citando o próprio compositor como tendo-se referido muitas vezes a uma motivação de ordem política para a composição da obra: “a mensagem de In Vain é a minha dor, o meu medo e a minha raiva pelo regresso dos nacionalistas de extrema‐direita” (a música é de 2000, composta, portanto, logo a seguir à ascensão ao poder do Partido da Liberdade da Áustria, na sequência dos resultados eleitorais de 1999). E também na música o material dissonante – sinistro, tenebroso – do início regressa sempre, opressivamente, mostrando que a promessa dos acordes da série de harmónicos (um mundo em paz) não se cumpriu”;

· quanto ao impacto expressivo da música, apresenta-a como “de tal ordem que esta interpretação se torna algo comezinha, algo ingénua – ou, pelo menos, limitada”. E prossegue: “Da música desprende‐se uma tal magia que irresistivelmente se evoca uma noção (quase mística) de transcendência, na linha de compositores como Scriabin ou mesmo dos propósitos iniciais do movimento romântico (que igualmente visava a ideia do sublime). Como diz Alex Ross, Haas “é um romântico esotérico, cuja música habita a majestade e o terror do sublime”. Também por aí podemos entender a intenção emocional da música de Haas e o impacto desta obra que, apesar de não conter nenhuma melodia e de em nenhum momento se aproximar de qualquer conceção mais tradicional de música, se tem tornado uma obra de culto um pouco por todo o lado.”

Não cometerei certamente especial inconfidência se concluir esta breve prosa com uma referência ao que me segredou PSC, na ocasião sentado exatamente ao meu lado e ainda em verdadeiro êxtase, no termo do espetáculo: “este foi talvez o melhor concerto a que alguma vez assisti na Casa da Música”. E aqui assim fica, pelo menos, uma medida do privilégio que foi dado ao Porto no final da tarde do último Sábado.

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