quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

SEGURANÇA E RESILIÊNCIA




(O novo e trágico acontecimento de Tondela suscita novas reflexões em torno dos conceitos de segurança e resiliência. Ao contrário do que muitos e precipitados jornalistas o quiseram transmitir, o caso de Tondela não é um exemplo de falência organizativa do Estado. São outros problemas, não menos graves do que as falhas de junho e outubro.)

A propósito dos acontecimentos de junho e outubro passados, a equipa do Professor Xavier Viegas chamou a atenção para uma dimensão de intervenção que estava a ser ignorada. Essa dimensão que, algo simplificadamente, muitos acomodaram no termo resiliência, respeita à necessidade de um longo e árduo trabalho com as populações locais e as suas formas de organização, quando elas existam. Esse longo e árduo trabalho tem várias frentes: a da sensibilização, a da organização para processos de emergência, a educação cívica, as operações de limpeza de áreas circundantes às residências dispersas, a informação, a valorização do conhecimento prático que muitas daquelas populações ainda possuem, só para falar das que me parecem mais óbvias e imediatas. Este trabalho comunitário, porque é disso que se trata, orientado para o aumento paulatino mas sustentado da resiliência das populações em risco, é crucial para que não se cristalize a ideia de que tudo é responsabilidade do Estado, qualquer que seja o nível administrativo em questão, o local, o meso ou sub-regional e o central. Como precipitadamente os responsáveis políticos de então sob fogo, ministra e secretário de Estado, fizeram passar nas suas reações atabalhoadas e aturdidas, incrementar a resiliência das populações não pode ser entendido como uma desresponsabilização do Estado e um convite à sua criminosa inação. Não. A resiliência das populações é uma esfera de intervenção de uma abordagem mais integrada ao flagelo, trabalhando competências e organização para catástrofes inesperadas. Todos já percebemos e temo que não esteja enganado, a conceção de Xavier Viegas vai cair no esquecimento e estamos a falar de alguém que sabe do que fala.

O novo acontecimento trágico em que Tondela se viu envolvido, embora de outra natureza, suscita reflexões do género, mas neste caso cruzando em meu entender segurança e resiliência. O jornalismo impreparado apressou-se a tentar encontrar no acidente uma nova forma de falência do Estado e de falha de governação. Não o encontrou na primeira abordagem ao problema. Refugiou-se no dramatismo da situação. Uns dias depois, já depois de quebrado o efeito dramático do acontecimento, procurou falhas de licenciamento e outras obscuras falências da intervenção pública, local ou central. É espantoso como este jornalismo impreparado oscila brutalmente entre denunciar tudo o que é burocracia de licenciamento para depois procurar falhas precisamente no que combateram antes por excesso de burocracia. Já começa a meter nojo tanta incompetência jornalística.

Ninguém se preocupou em identificar o problema central: uma cultura de segurança facilitista que atravessa fatalmente toda a sociedade portuguesa. A associação recreativa em cujas instalações ocorreu o trágico desenlace é seguramente algo de precioso na manutenção de níveis de capital social, confiança e entretenimento naquela freguesia. Faz certamente milagres com os parcos recursos que possui. Mas acomodar uma centena de pessoas numa sala com condições de segurança não testadas para situações de emergência, com uma porta a abrir para dentro e não para fora e sabe-se lá em que condições de instalação da salamandra de aquecimento é produto da ausência de uma cultura assumida e estabelecida de segurança. Esta afirmação parece contraditória com o reconhecimento de que certamente a referida associação faz milagres em termos de ajuda às populações. Mas não é. Essa cultura de ajuda não integra as preocupações de segurança. Poderíamos aqui dissertar sobre a correlação que certamente existe entre falta de cultura de segurança e o nível médio de educação das populações. Como também o poderíamos fazer a propósito de outros exemplos, como por exemplo o da segurança rodoviária. Não quero ser indelicado para com populações que já sofreram de mais para estar ouvir sermões.

O que eu quero essencialmente dizer é que o novo acontecimento trágico de Tondela ainda pode ser remetido para as teses de Xavier Viegas. Resiliência e segurança fazem parte do mesmo trabalho de envolvimento das populações locais na procura de soluções de organização e segurança mais cooperativas. Não vejo as autarquias e as associações de desenvolvimento local convictas e empenhadas neste tipo de intervenção local. Rios de dinheiro estão a ser vertidos em múltiplos programas de apoio ao microempreendedorismo dos quais uma avaliação séria nos vai dar resultados de desperdício de recursos, atomização, sobreposição de atividades e tarefas, numa caça vergonhosa ao empreendedor potencial. Seria certamente melhor um programa estruturado de promoção sustentada de comportamentos resilientes das populações locais mais vulneráveis.

A Missão para a Valorização do Interior parece ter desaparecido do mapa. E o tal programa para o interior de Jorge Coelho, Miguel Cadilhe, Álvaro Amaro e outras personalidades do tipo não será certamente sensível a tais formas de filigrana de intervenção social. Tristes e tenebrosos tempos atravessam os territórios vulneráveis. E a revisão do PNPOT terá pensado nestas coisas? E o que pensará o Presidente da República desta abordagem?

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