quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O TEMPO NÃO VOLTA PARA TRÁS




(Não sendo um nostálgico purista quanto ao desaparecimento de símbolos, designadamente de símbolos urbanos, não posso deixar passar duas extinções, aparentemente sem nexo entre elas, mas eu sei qual o nexo que para mim as une. Uma livraria e uma revista, que vão perder-se no esquecimento.)

Como disse, não sou propriamente um nostálgico passadista que se entristece sempre que símbolos urbanos (de Cidade) ou de cultura urbana, vão desaparecendo na voracidade irreversível e do efémero. As Cidades e a cultura urbana são em si símbolos de mudança e, com exceção de alguns casos de pura estupidez, ganância ou boçalidade, regra geral os desaparecimentos correspondem a uma razão objetiva, seja o mercado que se intromete por vezes onde não devia ser chamado, seja a inexorabilidade do progresso técnico, seja a simples história das coisas e das pessoas. E como há coisas que vivem dependentes e associadas a certas pessoas.

No registo para memória futura do post de hoje, trago o encerramento de uma revista após 42 anos de vida e a extinção efetiva da crónica de morte anunciada em que a nossa e “minha” Livraria Leitura do grande livreiro Fernando Fernandes.

A revista não é mais do que a espanhola Interviú que cumpriu historicamente o seu papel de contributo para a extinção do moralismo sexual em Espanha mas também em Portugal onde a revista chegou a ser bastante popular. Em tempos de feminismo assanhado, as capas da Interviú cumpriram o seu papel na destruição desse moralismo bafiento que sempre caracterizou alguma sociedade espanhola empedernida e inerte que as movidas urbanas em seu tempo abalaram. E não me venham com a história da exploração gratuita do corpo da mulher, pois muitas das mulheres que fizeram capa da Interviú fizeram-no como demonstração da sua liberdade face ao sistema de valores então prevalecente. É simbólico que a revista tenha escolhido para o seu enterro definitivo a capa de Marisol, transformada numa espécie de Lolita da Ibéria.

O desaparecimento da Leitura era como disse uma crónica anunciada, sobretudo desde a saída de cena de Fernando Fernandes, um homem notável, com uma cultura espantosa, sempre atento às nossas curiosidades e interrogações. A Leitura já há muito tempo deixara de ser a nossa Leitura, a atmosfera tinha mudado e a sua última versão Leitura Books & LIving já se tinha transformado num do universo acolhedor que foi em tempos desde os tempos da ditadura até à dinâmica do 25 de Abril. Mas mesmo transformada em pastiche, fazia parte dos meus percursos por aquela zona da Cidade, à qual me ligam tempos de adolescência e juventude, incluindo a Universidade. Agora, atingida por um problema de insolvência da atual proprietária, finar-se-á definitivamente. Com a minha dependência da Amazon, não saio disto de consciência tranquila.

Interviú e Leitura ligadas pela usura do tempo, quem diria. Mas ambas tiveram o seu papel no contra a corrente. Nostalgia? Não, apenas a sensação da usura implacável do tempo, mas não é coisa com que não nos confrontemos sempre que de manhã projetamos a tromba no espelho.

Adenda (01.02.21,17)

Duas notas adicionais.

A  primeira tem que ver com a porta do lado direito da agora encerrada Leitura. Ela dava acesso a duas salas que marcaram dois anos intensos da minha vida, por volta dos abnegados 23 anos. Dois anos de explicações a alunos de economia, no ano de conclusão da licenciatura e um outro após a sua conclusão, antes do serviço militar. Dois anos que precederam a minha atividade pedagógica na FEP, de descoberta da minha vocação docente e que permitiram conhecer muita gente, com histórias inolvidáveis de juventude bem colocada na vida.

A segunda relaciona-se com a capa da Interviú e com o nu de Marisol. Como sempre divulgo os posts do blogue no Facebook e estava longe de imaginar que o nu de Marisol seria censurado. O que prova que a Interviú cumpriu o seu papel mesmo no seu desaparecimento, numa sociedade que está a ficar insuportavelmente suspeitosa.

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