domingo, 7 de janeiro de 2018

REINVENÇÕES




(Retido entre muros por força da atividade viral típica deste período, houve tempo para ler muita coisa na imprensa de sábado e domingo. A mistela é, para meu gosto, excessiva e apenas destaco no Expresso a pluma cada vez mais em riste de Clara Ferreira Alves e o texto de José Gil no Público sobre o mote da reinvenção criado por Marcelo. O texto de José Gil é, como sempre, estimulante.)

O texto de José Gil é corajoso pois, apesar de não reconhecer no realismo de Marcelo qualquer propósito messiânico, não hesita em considerar o discurso pós intervenção cirúrgica como um discurso quase messiânico (sem Messias).

A espiritualidade que Marcelo procura trazer para a prática política e social através do universo dos afetos, a procura de um novo sentido de unidade entre os Portugueses e os diferentes “países” que dão vida ao retângulo e ilhas e o sentimento de confiança no futuro a partir das nossas reais possibilidades (manifestadas e ocultas) constituem peças de uma “quase utopia” que poucos imaginariam ver lançada a partir da personalidade presidencial. Este programa de recuperação anímica dos portugueses não pode deixar de ser compreendido no quadro do profundo desabar de confiança que aconteceu entre junho e outubro. Os portugueses, pelo menos alguns, tiveram pela primeira vez a perceção da fragilidade real do Estado, do risco que significa viver em certas parcelas do território nacional e da incomunicabilidade perigosa existente entre diferentes dimensões da intervenção do Estado no território. Daí o desabar da confiança.

Mas a parte do texto de José Gil que mais captou a minha atenção pode resumir-se na seguinte citação: “(…) Se as suas (de Marcelo esclareço) propostas não parecem irrealistas é também porque hoje, no contexto europeu e mundial, se abriu um espaço propício a um curioso discurso antipopulista mas que vai, no entanto, buscar no populismo temas e estratégias discursivos que utiliza (como o faz Macron e outros)”. Já me tinha apercebido das ténues diferenças que, no contexto atual, podem registar-se entre projetos (e discursos) populistas e antipopulistas. Essas ténues diferenças são particularmente exigentes para uma inteligência política que escasseia. Marcelo, com o que Gil designa de utopia realista, terá sido o primeiro político a compreender o alcance dessa matéria, por muito que isso irrite José Pacheco Pereira. Ou seja, parece-me que Marcelo compreendeu o que Gil resume exemplarmente: “Entre a razão cínica da realpolitik e a razão cândida da utopia não se ergue uma antinomia – mas um espaço a libertar, radicalmente, a passo e passo.”

A esquerda parece pouco propensa a compreender e a tirar partido, experimentando, desse espaço a libertar. Mas mais tarde ou mais cedo vai chegar lá, não se sabe entretanto com que custos de experimentação e aprendizagem.

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