(Retido entre
muros por força da atividade viral típica deste período, houve tempo para ler
muita coisa na imprensa de sábado e domingo. A mistela é, para meu gosto,
excessiva e apenas destaco no Expresso a pluma cada vez mais em riste de Clara
Ferreira Alves e o texto de José Gil no Público sobre o mote da reinvenção criado por
Marcelo. O texto de José
Gil é, como sempre, estimulante.)
O texto de José Gil é corajoso pois, apesar de não reconhecer no realismo
de Marcelo qualquer propósito messiânico, não hesita em considerar o discurso pós
intervenção cirúrgica como um discurso quase messiânico (sem Messias).
A espiritualidade que Marcelo procura trazer para a prática política e social
através do universo dos afetos, a procura de um novo sentido de unidade entre
os Portugueses e os diferentes “países” que dão vida ao retângulo e ilhas e o
sentimento de confiança no futuro a partir das nossas reais possibilidades (manifestadas
e ocultas) constituem peças de uma “quase utopia” que poucos imaginariam ver lançada
a partir da personalidade presidencial. Este programa de recuperação anímica dos
portugueses não pode deixar de ser compreendido no quadro do profundo desabar
de confiança que aconteceu entre junho e outubro. Os portugueses, pelo menos
alguns, tiveram pela primeira vez a perceção da fragilidade real do Estado, do
risco que significa viver em certas parcelas do território nacional e da
incomunicabilidade perigosa existente entre diferentes dimensões da intervenção
do Estado no território. Daí o desabar da confiança.
Mas a parte do texto de José Gil que mais captou a minha atenção pode resumir-se
na seguinte citação: “(…) Se as suas (de
Marcelo esclareço) propostas não parecem irrealistas é também porque hoje, no
contexto europeu e mundial, se abriu um espaço propício a um curioso discurso
antipopulista mas que vai, no entanto, buscar no populismo temas e estratégias discursivos
que utiliza (como o faz Macron e outros)”. Já me tinha apercebido
das ténues diferenças que, no contexto atual, podem registar-se entre projetos
(e discursos) populistas e antipopulistas. Essas ténues diferenças são particularmente
exigentes para uma inteligência política que escasseia. Marcelo, com o que Gil
designa de utopia realista, terá sido o primeiro político a compreender o
alcance dessa matéria, por muito que isso irrite José Pacheco Pereira. Ou seja,
parece-me que Marcelo compreendeu o que Gil resume exemplarmente: “Entre a razão cínica da realpolitik e a razão cândida da
utopia não se ergue uma antinomia – mas um espaço a libertar, radicalmente, a
passo e passo.”
A esquerda parece pouco propensa a compreender e a tirar partido, experimentando,
desse espaço a libertar. Mas mais tarde ou mais cedo vai chegar lá, não se sabe
entretanto com que custos de experimentação e aprendizagem.
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