As palavras divergem pontualmente e linguisticamente, mas o essencial permanece. E o essencial veio a lume na longa audição no Congresso de Michael Cohen, o ex-advogado pessoal de Donald Trump: “Tenho vergonha de ter participado na ocultação dos atos ilícitos do senhor Trump, em vez de prestar atenção à minha própria consciência. Tenho vergonha, porque sei o que o senhor Trump é. É um racista. É um vigarista. É batoteiro.” Falou ainda numa espécie de chefe da máfia e em alguém habituado a mandar ameaçar os seus inimigos e a mentir de forma descarada para alcançar os seus objetivos. Acusou-o, por fim, de o ter obrigado a mentir sobre pagamentos feitos para abafar relações extraconjugais e de saber que a campanha de Hillary Clinton nas eleições de 2016 estava a ser alvo de ataques externos. Um rol inigualável de “qualidades” que visivelmente correspondem por defeito ao perfil de um homem demasiado pequeno para ser uma parte tolerável do espaço público americano e internacional.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019
A GALIZA É MUITO SENSÍVEL …
(Com a devida vénia à VOZ de GALICIA)
(Coisas de momento: por um lado, as notícias de hoje anunciam-nos um possível
recrutamento de médicos de família portugueses pela vizinha Galiza com
remunerações oferecidas que vão para o dobro das nossas; por outro, o crescimento
da indústria automóvel em Portugal parece incomodar a imprensa galega. Embora a Xunta se anuncie como um governo responsável,
a Galiza parece estar muito sensível …)
Vamos primeiro à questão dos médicos de família portugueses e ao possível “take over” que o Sistema Regional de Saúde
galego pode exercer sobre a nossa ainda depauperada e insuficiente oferta de médicos
generalistas.
Por vezes, anda por aí uma irritante propensão para ignorar o óbvio. Senão
vejamos. Estamos inseridos numa União Europeia e num mercado único. Por razões
que se prendem com o desigual potencial produtivo das economias nacionais, com
a dimensão político-administrativa da determinação dos salários sobretudo no
setor público e por uma reduzida propensão das gerações que já foram jovens e
que já o não são para procurar vida noutras paragens e países, a integração
económica da Galiza, do Norte e das economias ibéricas tem-se aprofundado sem
uma convergência salarial correspondente. Há aqui aparentemente algo de
misterioso, que até justificou no passado alguns artigos no âmbito da economia
do trabalho e com gente de grande notoriedade e prestígio como Olivier Blanchard
para tentar explicar o paradoxo. A não convergência salarial acontece também com
um desigual comportamento de desemprego em épocas de crise, com os espanhóis a “tolerarem”
socialmente taxas de desemprego bem mais elevadas do que o registado em Portugal.
Neste contexto, alguém pode admirar-se que, à mínima expressão de procura não
satisfeita na região com salários mais elevados, possa assistir-se a um fluxo com
origem na região de salários mais baixos, sobretudo se as condições de funcionamento
do sistema de saúde de destino e de acolhimento das respetivas famílias forem
apelativas? Podem entretanto contrapor que a população médica revela em
Portugal uma muito débil propensão para a mobilidade no interior do país, respondendo
a incentivos de fixação determinadas pela abertura de concursos públicos específicos.
É certo que é assim e o caso do Algarve sempre foi para mim motivo de perplexidade.
Por que raio de razão os concursos públicos no Algarve para a fixação de médicos
não são nunca totalmente preenchidos? Uma região como o Algarve, apelativa e
hospitaleira, enfrentará algum bloqueio? De que natureza? Algumas conversas que
tenho tido com especialistas do setor dizem-me que o fator principal está nas
avaliações que os candidatos fazem das margens de progressão curricular e
profissional que a possível deslocalização lhes tenderá a proporcionar. E
segundo esse critério as massas críticas de Porto, Coimbra e Lisboa serão
sempre mais favoráveis que as que podem ser encontradas em regiões com baixa
massa crítica de atividades hospitalares, cirurgias por exemplo ou outras
quaisquer. Em confronto com o possível take-over
galego, acrescentaria um outro elemento. Os incentivos remuneratórios
proporcionados não serão suficientemente dissuasores dos constrangimentos atrás
mencionados.
Por isso, a única novidade nesta matéria é a emergência de uma nova evidência,
a insuficiente oferta galega de médicos generalistas para satisfazer
necessidades de médicos de família para o sistema regional de saúde. No
contexto atual, acaso esse take over
se confirme só uma forte negociação diplomática conseguirá amenizar as consequências
negativas para Portugal que provavelmente se farão essencialmente sentir a Norte.
O que teria algo de trágico, pois como sabemos o SNS de Portugal não conseguiu
ainda resolver a cobertura da população por médicos de família. Esta matéria toca
também a formação médica e pergunto-me se as Faculdades de Medicina e as Escolas
Superiores de Saúde estarão a receber os incentivos adequados para reforçarem o
seu próprio contributo para minimizar o problema. Só me espanta a novidade do
alarido. É como vivêssemos sobre brasas alimentando a ideia de que o fazemos numa
superfície de grande frescura. Incorrigíveis.
Vamos agora ao segundo ponto. Em 2015, o grupo PSA-Peugeot Citroen (de que
vive praticamente o porto de Vigo, por exemplo), no âmbito da sua estratégia de
produção (não estamos nós num mercado único?), decidiu agrupar os seus polos de
produção de Vigo, Madrid e Mangualde num complexo que foi designado de Polo Industrial
da Península Ibérica. Por cá, atrevo-me a dizer que tal operação foi
considerada mais uma oportunidade do que uma ameaça. Não sei bem se isto aconteceu
porque somos mais europeístas e temos melhor noção do que é o mercado único e
uma união económica e monetária ou porque somos ingénuos nesta coisa de que cooperation is business. Quero pensar
que é a primeira razão que devemos invocar. Mas tenho que vos dizer que por vezes
vacilo.
Ora, na Galiza, isto da PSA ter integrado Mangualde no polo industrial ibérico
causou alguma comichão em peles protecionistas mais sensíveis na região vizinha,
até porque a história recente dá conta de alguns investimentos estrangeiros na área
automóvel terem preferido a localização no Norte de Portugal. Em paralelo, o
dinamismo revelado pela economia portuguesa e do Norte de Portugal em matéria
de indústria automóvel (algo que está para lá apenas do fenómeno AutoEuropa e
inclui também a relação com a PSA) tem agravado essa comichão. Como sempre a
VOZ de GALICIA é um bom barómetro desse mal-estar ou incomodidade e disso é
exemplo o artigo de hoje (link aqui), intitulado “PSA Vigo y su
gran red de proveedores lusos catapultan al sector del automóvil en Portugal”.
Para além de representar um ego regional incontido, ou seja seria a PSA de Vigo
que estaria a impulsionar o setor automóvel em Portugal (mas que prosápia!), o
artigo é bem representativo da tal incomodidade. Vale a pena, por isso, citar a
sua parte final:
“Crescer à custa
da Galiza
O setor galego, aglutinado no Cluster
de Empresas de Automação da Galiza, ainda não publicou o seu balanço de 2018. Mas
o crescimento coincide com a localização de novas indústrias fornecedoras de
componentes, muitas delas com contratos para a PSA Vigo e Mangualde. Das novas
implantações, pelo menos dez multinacionais que admitiram como primeira opção
instalar-se na Comunidade acabaram por localizar-se em Portugal. Entre as mais
recentes está o fornecedor francês de peças de motor Bontaz Center. Na lista de
investimentos perdidos estão também os franceses da Mora (com 5 milhões de euros
em Arcos de Valdevez) e a Steep Plastique (50 milhões e 250 empregos) em Viana.
Também em Viana, a Eurostyle Systems investiu 18 milhões e criou 100 empregos. Valença
constitui a localização preferida pelos novos investidores, pela sua
proximidade a Vigo. Para ali irá a japonesa Howa com 10 milhões de euros e 170
empregos, apenas para mencionar os mais imediatos.”
Podemos dizer, assim, que a integração económica ibérica na UEM acontece não
apenas com uma maior tolerância social ao desemprego em Espanha do que em Portugal,
mas também agora com esta evidência de que há regiões mais sensíveis ao mercado
único e às suas lógicas. A Galiza parece ser bem mais sensível do que o Norte. Não
quero ser desmancha prazeres, mas interrogo-me se isto é para nós positivo.
Caros amigos galegos, que os tenho e bons, desculpem lá esta bicada.
GRAU ZERO
(cartoon de Pierre Kroll, http://www.lesoir.be)
A nova cimeira entre dois dos maiores e mais irresponsáveis cromos da política internacional destes dias, agora em Hanói (Vietname), fica inapelavelmente constituída num imortalizado expoente de um período da história contemporânea que só irá mesmo passar à posteridade enquanto memória eloquente de um deplorável vazio de quase tudo.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
UM GRANDE DISCURSO DE DRAGHI
(No ambiente da vetusta Universidade de Bolonha, que
Cidade, Draghi soltou-se e assinou um dos seus mais profundos discursos,
curiosamente e não por acaso sobre matérias que estão muito para além mesmo do
“farei tudo que for necessário” enquanto governador do BCE. O discurso é importante porque, finalmente,
alguém com responsabilidades europeias discute soberania e independência no
quadro de uma reflexão sobre a globalização.)
Talvez tenha sido influência do vetusto e vasto capital de conhecimento da
Universidade de Bolonha. Ou talvez porque o fim do seu mandato se avizinha e já
é tempo para praticar a heterodoxia. Ou talvez ainda porque alguém o desafiou a
pensar os destinos da União para além dos limites do BCE e da zona Euro. Seja
por que motivo for, a verdade é que o discurso de Draghi é um legado robusto
sobre questões que deveriam estar no centro do debate político para as eleições
europeias, bem mais importante sobre a escolha dos “culos” que se sentarão nos
anfiteatros e gabinetes de Bruxelas ou Estrasburgo.
Em verdade, deve dizer-se que Draghi não é uma personagem cristalina. Nem
sempre o seu pensamento político foi claro e transparente. Reconheça-se,
entretanto, a sua capacidade para ter transformado o programa de intervenção do
BCE em algo mais plástico e flexível do que a ortodoxia monetária determinaria,
acaso tivesse sido aplicada por alguém mais rígido e mais subserviente às
fixações alemãs. Mas neste discurso ele vai bastante além dessa agilidade de
governador e acrescenta pensamento robusto à matéria atrás referida.
O tema da intervenção (link aqui) é a discussão dos conceitos e margens de soberania e
independência no contexto de um mundo globalizado. Parece uma coisa menor, mas
não é. É aliás algo de fundamental para discutir o posicionamento face à União
Europeia. Ou seja, não faz sentido emitir palpites ou juízos mais profundos
sobre a União sem considerar que estar nela é uma forma de estar na
globalização. Podemos ser eventualmente contra a globalização, embora como
tenho aqui referido é companhia que me incomoda cada vez mais e que neste momento
procuro evitar. Não sou dos que para afirmar as minhas convicções aceite a
coexistência dos extremos. Podemos ser simplesmente reformistas, embora
reconhecendo que perdemos pelo menos durante algum tempo essa batalha. Podemos
ser adeptos incondicionais e acríticos da mesma, o que também não tem hoje
grande sentido. Mas qualquer posição crítica sobre a União ou condescendência
sobre os que quiseram sair (com informação distorcida, diga-se) exige um
contrafactual. O que faríamos estando fora da União no contexto da globalização
algo desconjuntada e perigosa que hoje se vive? Porque, meus amigos, não
adianta fazer de conta que a globalização não existe. Existe e exige um
posicionamento, tanto mais difícil quanto menor a dimensão do país e menor o
seu poder negocial, o qual como sabemos, é sempre superior, se o quisermos, à
dimensão. As dificuldades de barata tonta que o Reino Unido está a enfrentar
pela sua decisão não resultam apenas do emaranhado dos tratados e dos segredos
da negociação. Decorrem também da não acabada discussão britânica sobre o papel
a que podem aspirar na globalização de hoje e não nos ambientes imperiais em
que alguns personagens canhestros do Brexit gostam de se rever, babando-se nas
memórias da superioridade (e de classe) de outros tempos.
O que Draghi nos diz, cruamente, é que independência e soberania no mundo
globalizado não são sinónimos. Podemos ser independentes e não soberanos. A
pertença a blocos como a União (o que não significa ignorar o fervilhar da
crítica sobre o mundo a que pertencemos) poderá ser a via para recuperar a
soberania que dificilmente teremos agindo isoladamente no mundo globalizado.
Esta confusão, mostra Draghi, coexiste com a não consideração do significado
económico e político da União que ele demonstra com alguns indicadores que
deveriam permanecer nas nossas cabeças.
É também relevante o que Draghi nos recorda sobre a perceção dos cidadãos.
Estes valoram muito positivamente algumas das principais realizações
conseguidas pela União sem quebra de intensidade dos barómetros de opinião a
esse respeito. A quebra de confiança, irrecusável, nas instituições europeias é
de natureza diferente pois coexiste com uma quebra ainda mais elevada nas
instituições e na classe política a nível nacional. Tudo isso Draghi documenta.
Mas a parte mais sumarenta do discurso de Draghi é a sua análise crítica dos
modelos de governança utilizados pela União para facilitar a cooperação entre
os Estados-membros, no contexto de assimetrias existentes, indutor de resistências
e de fugas a esses modelos. Draghi foca-se nos dois modelos principais, senão únicos:
o da criação de instituições comuns a toda a União, tais como o BCE e o do
estabelecimento de regras para que o poder executivo permaneça nos governos
nacionais. A perspetiva do Governador sobre a dimensão das instituições pode
ser considerada demasiado auto-abonatória já que ele reflete em causa própria,
sem talvez o distanciamento necessário e não quis entrar na crítica às
restantes instituições como a própria Comissão com as suas competências por
exemplo em termos de política comercial externa. Draghi é crítico do baixo poder
de enforcement das regras definidas,
sejam as fiscais, sejam as de caráter estrutural com as recomendações específicas
dirigidas a países determinados. Atribui-lhes um fraco poder de adaptação e
flexibilidade, capacidades que reporta às instituições mencionadas. Paira nas
entrelinhas do discurso a perceção de que Draghi antevê a necessidade de uma
transição que aponte para mais instituições comuns, mas reconhece a falta de
confiança entre os Estados-membros para garantir a sua concretização. E não menos importante, Draghi atribui à
governação institucional um maior potencial de controlo e accountability democráticos.
As entrelinhas do discurso talvez sejam mais sugestivas do que o que é
explicitado. Mas o que me parece sintomático é o discurso terminar com uma citação
de Bento XVI retirada de um sermão realizado na Igreja de St. Winfried em Bona
em 1981:
“Para
se ser sóbrio e fazer o que é possível e não reivindicar com um coração ardente
o impossível foi sempre difícil: a voz da razão nunca chega tão alto como um
grito irracional … Mas a verdade é que as morais políticas consistem precisamente
em resistir às seduções das palavras grandiloquentes … Não é o moralismo da aventura que
é moral … Não é a ausência de qualquer compromisso que define a verdadeira moral
da atividade política, mas antes o próprio compromisso em si.”
Nesta citação talvez encontremos e situemos o verdadeiro Draghi, o que
apelaria a uma investigação por si só sugestiva.
LIBERAIS, LIBERAIS, NEGÓCIOS À PARTE
(Pela manhã bem cedo, mas que vida esta, com o Alfa cada
vez mais instável mas com o wifi a
funcionar desta vez menos mal, o Financial Times Brussels Briefing traz-me uma
notícia de algo que aconteceu após o encerramento dos mercados bolsistas. O governo holandês, não satisfeito com os rumos
que a AIR FRANCE- KLM está a tomar, anuncia que comprará em mercado as ações
que forem necessárias para ganhar paridade e igualdade de influência com os
franceses na gestão da companhia.)
Eis um sinal evidente dos tempos que vivemos. Quem diria que um governo
como o holandês chefiado por Mark Rutte se apressava a tomar posição e
influência sobre uma companhia que parece viver mal o casamento de conveniência
ou fusão, como entenderem, que a AIR FRANCE e a KLM protagonizaram já há algum
tempo? Não vou discutir os termos concretos em a gestão da companhia tem
evoluído, mas não custa admitir que os franceses estejam dispostos a seguir uma
máxima do tipo Macron c’est moi e tivessem nos últimos tempos
puxado a brasa à sua sardinha. Convém não ignorar que há também aqui uma
questão de aeroportos e os holandeses não estejam dispostos a deixar o
aeroporto de Schiphol Amesterdão desprotegido. E os instintos protecionistas
dos franceses não se apagam por magia.
Por esta hora, haverá por aí muito liberal mais ou menos convicto com azia
matinal, incomodado com as partidas que a maldita realidade prega à pureza das
ideias.
Mas esta é também uma imagem da verdadeira Europa, com os interesses
nacionais a mostrarem a sua força, à direita e à esquerda. Os distraídos que se
cuidem, pois qualquer percalço pode ser a morte do artista.
Projetando a moral da história para os limites apertados da nossa
realidade, até estarei disposto a rever a minha conhecida posição de me não
entusiasmar por ai além com a velha ideia de uma companhia de bandeira e com o
que isso custa. O problema é que, com todas as peripécias e evoluções que a TAP
atravessou nos últimos tempos, a situação já não é nem carne nem peixe. E os
aeroportos foram nacionalizados para complicar a situação, aos franceses
precisamente. O que significa que muito provavelmente estaremos sem poder de
tiro quando ele seria mais necessário. A onda de privatizações que a TROIKA e o
PAF nos impingiram veio no pior momento possível, ou seja em pleno
recrudescimento dos interesses nacionais, que por cá correm o risco de não
serem mais do que interessesinhos.
Parece que estamos condenados a viver em contraciclo com a história. Mas o
tempo está ameno, os TUK TUK circulam cada vez mais, as esplanadas preenchem-se
de gente e o endividamento para consumo ou para necessidades continua apesar
dos alertas do cada vez mais isolado governador …
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