domingo, 3 de fevereiro de 2019

I DID IT



(Não imagino o cinema sem Clint Eastwood e sem a coerência da sua eterna afirmação do indivíduo perante a ameaça opressora do Estado. The Mule compara com o Gran Torino e devolve-nos o prazer de um cinema implacável de história linear, contada com a firmeza que só os Grandes conseguem alcançar. Só é pena que tenhamos de ver a grandeza de um cineasta como Eastwood com um cheiro a pipocas que tresanda.)

Não é por acaso que Earl Grant, produtor de flores, se coloca no universo daqueles que perdem o pé pelo avanço da tecnologia e que o sistema financeiro executa implacavelmente as condições de hipoteca e de empréstimos. Grant é um produtor de flores que se viu ultrapassado, apesar de todo o seu know-how e dedicação às flores, pela força da distribuição e comércio eletrónico, com a retaguarda de um poderoso sistema de logística. O seu trabalho insano de distribuição das flores que cultivava, fazendo-o percorrer praticamente todos os Estados da União na sua velha pick-up, é um alvo fácil para as novas condições de logística com o auxílio da internet.

Ao longo do filme há um conjunto delicioso de referências aos que tudo resolvem com o auxílio do telemóvel, do brutamontes que não consegue manobrar a máquina de bebidas com o telemóvel na mão à família de negros que busca em vão o auxílio da internet para substituir um pneu numa estrada deserta.

A associação de um perdedor da globalização digital ao tráfego de droga é genial, com o calcorreador das longas estradas desertas americanas, trabalhando um dos símbolos mais marcantes do modelo territorial americano, a transformar-se num correio de droga imprevisível mas competente. E o regresso às suas funções, antes tão relegadas para um plano secundário, de pai de família para acompanhar os últimos momentos de vida da sua ex-mulher (uma também espantosa Diane Keaton de contenção) que leva Earl Grant à desobediência das regras estritas do novo capo e o conduz à detenção, recuperando a dignidade de alguém apreciado de novo pelos seus.

E não se resiste a interpretar a sua prisão por um excecional Bradley Cooper no papel de inspetor especial, com a cara ensanguentada pela agressão dos homens do cartel, como uma caminhada de um Cristo para o ajuste de contas com a justiça, com a sua coroa de espinhos invisível mas ali tão presente.

E se dúvidas houvera quanto à identificação de Eastwood com o comportamento de Earl Grant, o seu I DID IT no tribunal, antecipando-se à acusação de culpado e desarmando a sua própria advogada, é definitivo, irredutível. A similaridade com o final de Gran Torino é por demais evidente. Neste último, o antigo combatente de guerra sacrifica a sua própria vida para incriminar finalmente o gang que atormentava o seu jovem amigo coreano a quem lega a sua estimada viatura. Agora, Grant assume as suas culpas para recuperar a afeição e respeito da sua família. O que na sala parece uma graça de mau gosto, quando a filha desavinda se rende à coragem moral do pai e exclama que pelo menos vão saber onde ele está, é bem a imagem do sacrifício redentor que Eastwood pretende reafirmar.

Sem Eastwood dificilmente se fará cinema assim, assim como este tipo de individualismo irredutível e profundo caminha aceleradamente para o estatuto de espécie em extinção. Desfrutemos enquanto a energia não lhe faltar e sobretudo enquanto a perda de faculdades não comece a ser visível no grande ecrã.

Sem comentários:

Enviar um comentário