(Não imagino o cinema sem Clint Eastwood e sem a
coerência da sua eterna afirmação do indivíduo perante a ameaça opressora do
Estado. The Mule compara com o Gran Torino e devolve-nos o prazer de um cinema
implacável de história linear, contada com a firmeza que só os Grandes
conseguem alcançar. Só é pena que tenhamos de ver a grandeza de um cineasta como Eastwood com
um cheiro a pipocas que tresanda.)
Não é por acaso que Earl Grant, produtor de flores, se coloca no universo
daqueles que perdem o pé pelo avanço da tecnologia e que o sistema financeiro
executa implacavelmente as condições de hipoteca e de empréstimos. Grant é um
produtor de flores que se viu ultrapassado, apesar de todo o seu know-how e dedicação às flores, pela
força da distribuição e comércio eletrónico, com a retaguarda de um poderoso
sistema de logística. O seu trabalho insano de distribuição das flores que
cultivava, fazendo-o percorrer praticamente todos os Estados da União na sua
velha pick-up, é um alvo fácil para as novas condições de logística com o
auxílio da internet.
Ao longo do filme há um conjunto delicioso de referências aos que tudo
resolvem com o auxílio do telemóvel, do brutamontes que não consegue manobrar a
máquina de bebidas com o telemóvel na mão à família de negros que busca em vão
o auxílio da internet para substituir um pneu numa estrada deserta.
A associação de um perdedor da globalização digital ao tráfego de droga é
genial, com o calcorreador das longas estradas desertas americanas, trabalhando
um dos símbolos mais marcantes do modelo territorial americano, a
transformar-se num correio de droga imprevisível mas competente. E o regresso às
suas funções, antes tão relegadas para um plano secundário, de pai de família para
acompanhar os últimos momentos de vida da sua ex-mulher (uma também espantosa
Diane Keaton de contenção) que leva Earl Grant à desobediência das regras estritas
do novo capo e o conduz à detenção, recuperando a dignidade de alguém apreciado
de novo pelos seus.
E não se resiste a interpretar a sua prisão por um excecional Bradley
Cooper no papel de inspetor especial, com a cara ensanguentada pela agressão
dos homens do cartel, como uma caminhada de um Cristo para o ajuste de contas
com a justiça, com a sua coroa de espinhos invisível mas ali tão presente.
E se dúvidas houvera quanto à identificação de Eastwood com o comportamento
de Earl Grant, o seu I DID IT no
tribunal, antecipando-se à acusação de culpado e desarmando a sua própria
advogada, é definitivo, irredutível. A similaridade com o final de Gran Torino é
por demais evidente. Neste último, o antigo combatente de guerra sacrifica a
sua própria vida para incriminar finalmente o gang que atormentava o seu jovem amigo coreano a quem lega a sua
estimada viatura. Agora, Grant assume as suas culpas para recuperar a afeição e
respeito da sua família. O que na sala parece uma graça de mau gosto, quando a
filha desavinda se rende à coragem moral do pai e exclama que pelo menos vão
saber onde ele está, é bem a imagem do sacrifício redentor que Eastwood
pretende reafirmar.
Sem Eastwood dificilmente se fará cinema assim, assim como este tipo de
individualismo irredutível e profundo caminha aceleradamente para o estatuto de
espécie em extinção. Desfrutemos enquanto a energia não lhe faltar e sobretudo enquanto
a perda de faculdades não comece a ser visível no grande ecrã.
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