(Madrugador no trabalho, é de manhã bem cedo que tenho
contacto com a rádio, regra geral entre a Antena 1 e a Antena 2, pois abomino publicidade
excessiva e a TSF foi chão que deu uvas, apesar de alguns resistentes. A rubrica “A contar” de David Ferreira na Antena
1 não é apenas uma fonte de memórias musicais, é um lamiré sobre o potencial de
um arquivo de sons que deveríamos saber tratar melhor.)
David Ferreira é uma das personalidades mais sugestivas e emblemáticas da rádio
pública. Tem uma memória musical prodigiosa, certamente baseada por um arquivo
da rádio pública que constitui uma imensa valia patrimonial. Mas é também filho
de David Mourão Ferreira e por isso tem outras memórias, de outras ambiências, do
fim do regime e da transição para a democracia. Mas a sua memória musical é
prodigiosa e para um ouvinte curioso como eu o programa de David Ferreira é ele
próprio uma história da música popular portuguesa e não só.
A título meramente aleatório, recordo-me de momentos fabulosos no “A Contar”
como o foram a estadia de Vinícius de Morais em Portugal e o relato da ambiência
de uma soirée na casa da Amália Rodrigues, com o sempre presente Alain Oulman, Natália
Correia, David Mourão Ferreira, José Carlos Ary dos Santos e o próprio Vinícius
(link aqui), com a voz saudosa do próprio David Mourão Ferreira. Mas o repositório
de David Ferreira é imenso e diversificado que podem ir dos contextos de
Jacques Brel, do nosso Max, de Ary dos Santos e de Tordo, num universo precioso
de memória em que a música se cruza com a evolução social e política.
Nos últimos dias, David Ferreira tem-se aventurado pela contextualização musical
dos tempos do Concílio Vaticano II e deu hoje para recordar a que já se me
tinha varrido da memória Soeur Sourire com o obsessivo Dominique (link aqui) que
não me saiu da cabeça todo o dia. Lembrava-me da simplicidade da freira mas
desconhecia a história trágica da mesma. Em colisão com as regras estritas da
congregação a que pertencia, a Soeur Sourire acabou por abandonar o hábito,
envolver-se numa matéria de desvios de fundos relacionados com as receitas dos
seus discos e acabar por se suicidar com a sua companheira do pós- experiência
religiosa. É nestes requintes de memória que o programa de David Ferreira é uma
verdadeira preciosidade. Os podcasts do A Contar são património valioso sem os quais o conhecimento
dos últimos anos musicais do regime e da transição democrática será sempre
truncado.
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