(Sobre a tragédia ditatorial de uma Venezuela sob a
deriva de Maduro já foi tudo praticamente dito. A história mostrou-nos frequentemente
que os discípulos dos caudilhos são bem piores do que os seus mestres e a
teoria ensinou-nos que a riqueza de recursos naturais é efetivamente uma maldição que
pesa sobre o subdesenvolvimento. Maduro e a Venezuela de hoje estão
determinados em confirmar esses dados da história e da teoria económica. Mas o problema não é esse. É antes a questão de
saber como se intervém numa situação de pura deriva sem acender o rastilho do
confronto civil e militar.)
Acabo de me irritar com a visualização de uma entrevista na SIC Notícias ao
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o amigo Augusto Santos Silva. Um
garnizé de jornalista esforçado em mostrar serviço tentou, primeiro, mostrar em
vão e sob enorme fracasso que o governo de Portugal ia a reboque dos europeus
mais poderosos. Derrotado pela resposta clara e firme do Ministro, o garnizé
tentou evoluir pela conhecida denúncia da hipocrisia da diplomacia económica,
regressando para isso aos tempos de Sócrates e dos negócios com a Venezuela de
Chávez. Também por este caminho viu os seus intentos gorados, acabando por
despedir-se simpaticamente do Ministro que uma vez mais mostrou a segurança
necessária para enfrentar este tipo de jornalismo inquisitorial-e pouco interessado
no respeito pela inteligência do espectador.
Mas o importante da entrevista é que a posição firme do governo português
de reconhecer o Presidente que se propõe levar a Venezuela a eleições
clarificadoras nos mostrou que os Negócios Estrangeiros de Portugal possuem
informação sobre a situação interna da Venezuela mais rica do que a está disponível
para consumo público. É, sabemos, uma posição com riscos, tendo em conta a dimensão
da comunidade luso-venezuelana e o que pode significar em termos de tragédia humanitária
um eventual confronto entre os que querem a clarificação democrática e os que
pretendem a continuidade no poder a todo o custo.
Não podemos ignorar que a deriva antidemocrática partiu de Maduro quando inventou
uma Assembleia Constituinte e ignorou uma Assembleia Nacional que tinha sido
eleita a partir de eleições que a comunidade internacional considerou legítimas.
A invocação de uma legalidade revolucionária para justificar o atalho antidemocrático
é simplesmente patética. O espírito da revolução bolivariana está há muito
tempo enterrado, sobretudo a partir do momento em que a memória de Chávez era utilizada
como uma espécie de redenção vinda do Além. Maduro é um líder corrupto que
viverá politicamente enquanto as Forças Armadas o respaldarem, sabe-se lá a
troco de que benesses no presente ou no paraíso futuro alimentado pelas reservas
petrolíferas.
Pela informação que chega é difícil dimensionar corretamente o apoio
popular que Maduro possa ter neste momento. As grandes manifestações populares
do período chavista são uma miragem da história. E talvez seja por aí que os serviços
de inteligência diplomática darão ao Governo português a informação de que o
apoio de Maduro não lhe permitirá grandes veleidades de perseguição e força. Mas
o engano pode acontecer e haver uma surpresa desagradável. A margem de manobra
para a deposição de Maduro sem confronto interno e sem intervenção externa
americana, com Trump sedento por mostrar serviço libertador, é de facto muito
estreita e a qualquer momento pode haver um des- controlo que precipite os
acontecimentos e o confronto que pode ser trágico. Outra fonte possível de
informação mais aprofundada é a da posição das Forças Armadas, cujo posicionamento
face às forças em confronto deve ser mais complexo do que o que transparece dos
trânsfugas pontuais trazidos para a comunicação social como instrumento e fonte
de propaganda.
A maldição dos recursos naturais, essa sim, está aí plenamente revelada,
tal como noutros casos de predadores ditatoriais transformados em governos por
vias mais ou menos, menos do que mais, democráticas. As maiores reservas de
petróleo coabitam com a pobreza mais trágica, a destruição do Estado e a
incerteza mais profunda, como o enunciam os testemunhos conhecidos sobre a comunidade
luso-venezuelana.
O PCP e o Bloco de Esquerda, pelo menos algumas das suas personalidades,
tais como o PODEMOS em Espanha, não apreciaram a clarificação política assumida
pelos governos de Portugal e de Espanha. Por sua vez, a direita em ambos os países
ainda sonhou que os governos de Costa e de Sánchez tremessem mais em tomar essa
decisão. Convinha-lhes essa tibieza. A esquerda contestatária do apoio a Guaidó
navega na mais pura hipocrisia, pois não avança uma linha que seja sobre a resolução
da situação, mantendo Maduro e a sua deriva. Tudo isto não significa que a
posição do apoio a Guaidó não tenha riscos. Eles existem obviamente, mas
dependem do agravamento da situação que Maduro extremou. O que intuo é que iremos
tirar fortes ensinamentos da crise venezuelana. O que espero é que seja pelos melhores
motivos e pela passagem estreita da solução sem confronto interno e intervenção
externa. O pedido de Maduro ao Papa de mediação, notícia que ainda não vi suficientemente
confirmada, é uma esperança. E a neutralidade mantida por António Guterres na
ONU, sem deixar de defender os valores democráticos, é um complemento dessa
esperança. Os 1.000 e tal por cento de inflação já são suficientemente
devastadores.
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