(No ambiente da vetusta Universidade de Bolonha, que
Cidade, Draghi soltou-se e assinou um dos seus mais profundos discursos,
curiosamente e não por acaso sobre matérias que estão muito para além mesmo do
“farei tudo que for necessário” enquanto governador do BCE. O discurso é importante porque, finalmente,
alguém com responsabilidades europeias discute soberania e independência no
quadro de uma reflexão sobre a globalização.)
Talvez tenha sido influência do vetusto e vasto capital de conhecimento da
Universidade de Bolonha. Ou talvez porque o fim do seu mandato se avizinha e já
é tempo para praticar a heterodoxia. Ou talvez ainda porque alguém o desafiou a
pensar os destinos da União para além dos limites do BCE e da zona Euro. Seja
por que motivo for, a verdade é que o discurso de Draghi é um legado robusto
sobre questões que deveriam estar no centro do debate político para as eleições
europeias, bem mais importante sobre a escolha dos “culos” que se sentarão nos
anfiteatros e gabinetes de Bruxelas ou Estrasburgo.
Em verdade, deve dizer-se que Draghi não é uma personagem cristalina. Nem
sempre o seu pensamento político foi claro e transparente. Reconheça-se,
entretanto, a sua capacidade para ter transformado o programa de intervenção do
BCE em algo mais plástico e flexível do que a ortodoxia monetária determinaria,
acaso tivesse sido aplicada por alguém mais rígido e mais subserviente às
fixações alemãs. Mas neste discurso ele vai bastante além dessa agilidade de
governador e acrescenta pensamento robusto à matéria atrás referida.
O tema da intervenção (link aqui) é a discussão dos conceitos e margens de soberania e
independência no contexto de um mundo globalizado. Parece uma coisa menor, mas
não é. É aliás algo de fundamental para discutir o posicionamento face à União
Europeia. Ou seja, não faz sentido emitir palpites ou juízos mais profundos
sobre a União sem considerar que estar nela é uma forma de estar na
globalização. Podemos ser eventualmente contra a globalização, embora como
tenho aqui referido é companhia que me incomoda cada vez mais e que neste momento
procuro evitar. Não sou dos que para afirmar as minhas convicções aceite a
coexistência dos extremos. Podemos ser simplesmente reformistas, embora
reconhecendo que perdemos pelo menos durante algum tempo essa batalha. Podemos
ser adeptos incondicionais e acríticos da mesma, o que também não tem hoje
grande sentido. Mas qualquer posição crítica sobre a União ou condescendência
sobre os que quiseram sair (com informação distorcida, diga-se) exige um
contrafactual. O que faríamos estando fora da União no contexto da globalização
algo desconjuntada e perigosa que hoje se vive? Porque, meus amigos, não
adianta fazer de conta que a globalização não existe. Existe e exige um
posicionamento, tanto mais difícil quanto menor a dimensão do país e menor o
seu poder negocial, o qual como sabemos, é sempre superior, se o quisermos, à
dimensão. As dificuldades de barata tonta que o Reino Unido está a enfrentar
pela sua decisão não resultam apenas do emaranhado dos tratados e dos segredos
da negociação. Decorrem também da não acabada discussão britânica sobre o papel
a que podem aspirar na globalização de hoje e não nos ambientes imperiais em
que alguns personagens canhestros do Brexit gostam de se rever, babando-se nas
memórias da superioridade (e de classe) de outros tempos.
O que Draghi nos diz, cruamente, é que independência e soberania no mundo
globalizado não são sinónimos. Podemos ser independentes e não soberanos. A
pertença a blocos como a União (o que não significa ignorar o fervilhar da
crítica sobre o mundo a que pertencemos) poderá ser a via para recuperar a
soberania que dificilmente teremos agindo isoladamente no mundo globalizado.
Esta confusão, mostra Draghi, coexiste com a não consideração do significado
económico e político da União que ele demonstra com alguns indicadores que
deveriam permanecer nas nossas cabeças.
É também relevante o que Draghi nos recorda sobre a perceção dos cidadãos.
Estes valoram muito positivamente algumas das principais realizações
conseguidas pela União sem quebra de intensidade dos barómetros de opinião a
esse respeito. A quebra de confiança, irrecusável, nas instituições europeias é
de natureza diferente pois coexiste com uma quebra ainda mais elevada nas
instituições e na classe política a nível nacional. Tudo isso Draghi documenta.
Mas a parte mais sumarenta do discurso de Draghi é a sua análise crítica dos
modelos de governança utilizados pela União para facilitar a cooperação entre
os Estados-membros, no contexto de assimetrias existentes, indutor de resistências
e de fugas a esses modelos. Draghi foca-se nos dois modelos principais, senão únicos:
o da criação de instituições comuns a toda a União, tais como o BCE e o do
estabelecimento de regras para que o poder executivo permaneça nos governos
nacionais. A perspetiva do Governador sobre a dimensão das instituições pode
ser considerada demasiado auto-abonatória já que ele reflete em causa própria,
sem talvez o distanciamento necessário e não quis entrar na crítica às
restantes instituições como a própria Comissão com as suas competências por
exemplo em termos de política comercial externa. Draghi é crítico do baixo poder
de enforcement das regras definidas,
sejam as fiscais, sejam as de caráter estrutural com as recomendações específicas
dirigidas a países determinados. Atribui-lhes um fraco poder de adaptação e
flexibilidade, capacidades que reporta às instituições mencionadas. Paira nas
entrelinhas do discurso a perceção de que Draghi antevê a necessidade de uma
transição que aponte para mais instituições comuns, mas reconhece a falta de
confiança entre os Estados-membros para garantir a sua concretização. E não menos importante, Draghi atribui à
governação institucional um maior potencial de controlo e accountability democráticos.
As entrelinhas do discurso talvez sejam mais sugestivas do que o que é
explicitado. Mas o que me parece sintomático é o discurso terminar com uma citação
de Bento XVI retirada de um sermão realizado na Igreja de St. Winfried em Bona
em 1981:
“Para
se ser sóbrio e fazer o que é possível e não reivindicar com um coração ardente
o impossível foi sempre difícil: a voz da razão nunca chega tão alto como um
grito irracional … Mas a verdade é que as morais políticas consistem precisamente
em resistir às seduções das palavras grandiloquentes … Não é o moralismo da aventura que
é moral … Não é a ausência de qualquer compromisso que define a verdadeira moral
da atividade política, mas antes o próprio compromisso em si.”
Nesta citação talvez encontremos e situemos o verdadeiro Draghi, o que
apelaria a uma investigação por si só sugestiva.
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