quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

UM GRANDE DISCURSO DE DRAGHI



(No ambiente da vetusta Universidade de Bolonha, que Cidade, Draghi soltou-se e assinou um dos seus mais profundos discursos, curiosamente e não por acaso sobre matérias que estão muito para além mesmo do “farei tudo que for necessário” enquanto governador do BCE. O discurso é importante porque, finalmente, alguém com responsabilidades europeias discute soberania e independência no quadro de uma reflexão sobre a globalização.)

Talvez tenha sido influência do vetusto e vasto capital de conhecimento da Universidade de Bolonha. Ou talvez porque o fim do seu mandato se avizinha e já é tempo para praticar a heterodoxia. Ou talvez ainda porque alguém o desafiou a pensar os destinos da União para além dos limites do BCE e da zona Euro. Seja por que motivo for, a verdade é que o discurso de Draghi é um legado robusto sobre questões que deveriam estar no centro do debate político para as eleições europeias, bem mais importante sobre a escolha dos “culos” que se sentarão nos anfiteatros e gabinetes de Bruxelas ou Estrasburgo.

Em verdade, deve dizer-se que Draghi não é uma personagem cristalina. Nem sempre o seu pensamento político foi claro e transparente. Reconheça-se, entretanto, a sua capacidade para ter transformado o programa de intervenção do BCE em algo mais plástico e flexível do que a ortodoxia monetária determinaria, acaso tivesse sido aplicada por alguém mais rígido e mais subserviente às fixações alemãs. Mas neste discurso ele vai bastante além dessa agilidade de governador e acrescenta pensamento robusto à matéria atrás referida.

O tema da intervenção (link aqui) é a discussão dos conceitos e margens de soberania e independência no contexto de um mundo globalizado. Parece uma coisa menor, mas não é. É aliás algo de fundamental para discutir o posicionamento face à União Europeia. Ou seja, não faz sentido emitir palpites ou juízos mais profundos sobre a União sem considerar que estar nela é uma forma de estar na globalização. Podemos ser eventualmente contra a globalização, embora como tenho aqui referido é companhia que me incomoda cada vez mais e que neste momento procuro evitar. Não sou dos que para afirmar as minhas convicções aceite a coexistência dos extremos. Podemos ser simplesmente reformistas, embora reconhecendo que perdemos pelo menos durante algum tempo essa batalha. Podemos ser adeptos incondicionais e acríticos da mesma, o que também não tem hoje grande sentido. Mas qualquer posição crítica sobre a União ou condescendência sobre os que quiseram sair (com informação distorcida, diga-se) exige um contrafactual. O que faríamos estando fora da União no contexto da globalização algo desconjuntada e perigosa que hoje se vive? Porque, meus amigos, não adianta fazer de conta que a globalização não existe. Existe e exige um posicionamento, tanto mais difícil quanto menor a dimensão do país e menor o seu poder negocial, o qual como sabemos, é sempre superior, se o quisermos, à dimensão. As dificuldades de barata tonta que o Reino Unido está a enfrentar pela sua decisão não resultam apenas do emaranhado dos tratados e dos segredos da negociação. Decorrem também da não acabada discussão britânica sobre o papel a que podem aspirar na globalização de hoje e não nos ambientes imperiais em que alguns personagens canhestros do Brexit gostam de se rever, babando-se nas memórias da superioridade (e de classe) de outros tempos.

O que Draghi nos diz, cruamente, é que independência e soberania no mundo globalizado não são sinónimos. Podemos ser independentes e não soberanos. A pertença a blocos como a União (o que não significa ignorar o fervilhar da crítica sobre o mundo a que pertencemos) poderá ser a via para recuperar a soberania que dificilmente teremos agindo isoladamente no mundo globalizado. Esta confusão, mostra Draghi, coexiste com a não consideração do significado económico e político da União que ele demonstra com alguns indicadores que deveriam permanecer nas nossas cabeças.

É também relevante o que Draghi nos recorda sobre a perceção dos cidadãos. Estes valoram muito positivamente algumas das principais realizações conseguidas pela União sem quebra de intensidade dos barómetros de opinião a esse respeito. A quebra de confiança, irrecusável, nas instituições europeias é de natureza diferente pois coexiste com uma quebra ainda mais elevada nas instituições e na classe política a nível nacional. Tudo isso Draghi documenta.

Mas a parte mais sumarenta do discurso de Draghi é a sua análise crítica dos modelos de governança utilizados pela União para facilitar a cooperação entre os Estados-membros, no contexto de assimetrias existentes, indutor de resistências e de fugas a esses modelos. Draghi foca-se nos dois modelos principais, senão únicos: o da criação de instituições comuns a toda a União, tais como o BCE e o do estabelecimento de regras para que o poder executivo permaneça nos governos nacionais. A perspetiva do Governador sobre a dimensão das instituições pode ser considerada demasiado auto-abonatória já que ele reflete em causa própria, sem talvez o distanciamento necessário e não quis entrar na crítica às restantes instituições como a própria Comissão com as suas competências por exemplo em termos de política comercial externa. Draghi é crítico do baixo poder de enforcement das regras definidas, sejam as fiscais, sejam as de caráter estrutural com as recomendações específicas dirigidas a países determinados. Atribui-lhes um fraco poder de adaptação e flexibilidade, capacidades que reporta às instituições mencionadas. Paira nas entrelinhas do discurso a perceção de que Draghi antevê a necessidade de uma transição que aponte para mais instituições comuns, mas reconhece a falta de confiança entre os Estados-membros para garantir a sua concretização. E  não menos importante, Draghi atribui à governação institucional um maior potencial de controlo e accountability democráticos.

As entrelinhas do discurso talvez sejam mais sugestivas do que o que é explicitado. Mas o que me parece sintomático é o discurso terminar com uma citação de Bento XVI retirada de um sermão realizado na Igreja de St. Winfried em Bona em 1981:

Para se ser sóbrio e fazer o que é possível e não reivindicar com um coração ardente o impossível foi sempre difícil: a voz da razão nunca chega tão alto como um grito irracional … Mas a verdade é que as morais políticas consistem precisamente em resistir às seduções das palavras grandiloquentes … Não é o moralismo da aventura que é moral … Não é a ausência de qualquer compromisso que define a verdadeira moral da atividade política, mas antes o próprio compromisso em si.”

Nesta citação talvez encontremos e situemos o verdadeiro Draghi, o que apelaria a uma investigação por si só sugestiva.

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