terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

CÍRCULOS DE AMIZADES



(Por mais estranho que pareça, a cada remodelação governamental e a cada desaparecimento de uma personalidade política da nossa história recente mais se me enraíza a ideia de que a política se faz em círculos concêntricos cujo raio em relação à capital é cada vez menor. Esse sim, e não as questões familiares em si mesmas, é que me parece ser o afunilamento em curso mais gravoso.)

Foi uma coincidência da vida a última remodelação governamental ter acontecido praticamente em cima do desaparecimento de Arnaldo Matos, um dos personagens mais icónicos da revolução portuguesa e da militância da extrema-esquerda em Portugal. A propósito, recomendo a leitura de uma entrevista de arquivo que o Público on line acaba de publicar que Arnaldo Matos concedeu a Fernando Dacosta (link aqui). A entrevista é tudo menos panfletária e merece ser lida. Mas não é essa perspetiva que me move no post de hoje.

Causou algum brado, e a comunicação social pela-se por estas coisas (neste caso até o circunspecto Rui Rio ousou meter a sua colherada), que a última remodelação governamental trouxe pressupostamente um governo à porta fechada de relações familiares. O que não deixa de ser uma enorme hipocrisia, pois Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino já lá moravam e pai Vieira da Silva e filha Mariana Vieira da Silva já estavam no governo, apenas a última foi puxada para ministra da Modernização Administrativa, o que politicamente parece encaixar bem em alguém que seguia como sombra todas as dimensões da governação. O problema não me parece ser este. O afunilamento do recrutamento para os sucessivos governos, do PS mas também à direita, é antes de natureza geográfica, podendo dizer-se que acontece num círculo de entorno à capital cada vez mais reduzido. Aliás, se realizássemos uma análise mais fina dos governos do PSD ainda não adulterado por esta viragem à direita dos tempos de Passos Coelho, talvez encontrássemos círculos de recrutamento mais largos, o que não me espantaria dada a natureza constitutiva do partido. É verdade que tem havido exceções, por exemplo, Manuel Caldeira Cabral, Azeredo Lopes e João Pedro Matos Fernandes neste ciclo de governação, mas retirando o exemplo deste último, que tem resistido bem no âmbito de um arcaboiço técnico e cultural que até dá para meter na ordem os novos inquisidores-mor (feliz expressão do meu colega de blogue) como José Gomes Ferreira da SIC, as coisas não têm corrido bem aos outsiders daquele círculo cada vez mais estreito de recrutamento. E a comunicação social que faz parte da reprodução daquele círculo não dá tréguas aos que o ousam penetrar. Noutros ciclos de governação do PS, Elisa Ferreira foi também uma grande exceção aquela regra, sobretudo por razões de grande apuro técnico e de uma passagem brilhante pelo Parlamento Europeu.

Poderá dizer-se que alimento com esta perspetiva uma perspetiva cabalística da política centrada nos interesses da capital. Não se trata necessariamente de algo cabalístico. Trata-se antes do resultado de redes poderosas de concentração de recursos humanos na capital que acabam por fluir naturalmente, como convém à captura do interesse público. É um processo endogâmico de reprodução política, largamente responsável em meu entender pelo progressivo distanciamento da governação face ao país concreto, o que transporta o conceito de coesão territorial para o abstrato. Essa reprodução endogâmica transmite-se depois a determinados relatórios de instituições internacionais, como a OCDE, aliás como o meu colega de blogue bem o assinalou. A explicação é simples. Quem afinal é ouvido por essas instituições quando realizam as tais missões-relâmpago a que chamam eufemisticamente mergulho no terreno? Os mesmos de sempre que veiculam o discurso que pretendem que se imponha, pois o exterior ainda tem muita força.

Pergunta-se: mas o que é que os funerais e desaparecimentos de personalidades políticas têm que ver com isto?

Se quiserem ter a maçada de dedicar alguma atenção ao material de que a comunicação social se faz eco a propósito das palavras póstumas que muita gente emite sobre quem desaparece podem observar uma certa regularidade. Da direita à esquerda mais extrema, por exemplo o caso mais recente de Arnaldo Matos, toda a gente se conhece e se considera amigos muitas vezes do peito dos desaparecidos. O círculo é do mesmo tipo, é tudo boa gente. Talvez tenham desaparecido alguns símbolos e espaços icónicos da Lisboa que acolhia essa transversalidade. O Monte Carlo, o Procópio, para alguns mais ousados o Elefante Branco (dizem-me que reabriu) e outros do tipo. Mas a miscigenação existe. A última carta-texto de Vítor Ramalho a propósito da personalidade de Arnaldo Matos é de fazer chorar a calçada mais hirta. E assim vão evoluindo as coisas, as solidariedades dos tempos do PREC vão dando lugar a outras”solidariedades”, as que vão alimentando a governação, ambas em círculos cada vez mais fechados até ao esgotamento.

Podem questionar-me trazendo para a discussão o argumento de que há as bases partidárias de âmbito distrital e local que com o seu comportamento reivindicativo e aguerrido podem bloquear esta dinâmica do afunilamento dos círculos do recrutamento para a governação. Não seria tão otimista quanto a essa possibilidade. Muitos desses interesses contentam-se com pequenas colheitas locais do bolo do poder, alimentando redes pessoais de círculos também restritos, mas longe da capital. Outros vão alimentando o background da governação. Outros ainda descem até ao Parlamento. Mas será que a lógica da governação é refrescada por essas vias? Duvido e escasseiam as evidências para o poder admitir.

Atenção por isso ao novo governo pós eleições e já agora, e sem pretender ser indelicado ou mórbido, atenção aos próximos epitáfios.

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