(Por mais estranho que pareça, a cada remodelação governamental
e a cada desaparecimento de uma personalidade política da nossa história recente
mais se me enraíza a ideia de que a política se faz em círculos concêntricos cujo
raio em relação à capital é cada vez menor. Esse sim, e não as questões familiares em si
mesmas, é que me parece ser o afunilamento em curso mais gravoso.)
Foi uma coincidência da
vida a última remodelação governamental ter acontecido praticamente em cima do
desaparecimento de Arnaldo Matos, um dos personagens mais icónicos da revolução
portuguesa e da militância da extrema-esquerda em Portugal. A propósito,
recomendo a leitura de uma entrevista de arquivo que o Público on line acaba de publicar que Arnaldo
Matos concedeu a Fernando Dacosta (link aqui). A entrevista é tudo menos panfletária e
merece ser lida. Mas não é essa perspetiva que me move no post de hoje.
Causou algum brado, e a
comunicação social pela-se por estas coisas (neste caso até o circunspecto Rui
Rio ousou meter a sua colherada), que a última remodelação governamental trouxe
pressupostamente um governo à porta fechada de relações familiares. O que não
deixa de ser uma enorme hipocrisia, pois Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino já
lá moravam e pai Vieira da Silva e filha Mariana Vieira da Silva já estavam no
governo, apenas a última foi puxada para ministra da Modernização
Administrativa, o que politicamente parece encaixar bem em alguém que seguia como
sombra todas as dimensões da governação. O problema não me parece ser este. O
afunilamento do recrutamento para os sucessivos governos, do PS mas também à direita,
é antes de natureza geográfica, podendo dizer-se que acontece num círculo de entorno
à capital cada vez mais reduzido. Aliás, se realizássemos uma análise mais fina
dos governos do PSD ainda não adulterado por esta viragem à direita dos tempos
de Passos Coelho, talvez encontrássemos círculos de recrutamento mais largos, o
que não me espantaria dada a natureza constitutiva do partido. É verdade que
tem havido exceções, por exemplo, Manuel Caldeira Cabral, Azeredo Lopes e João Pedro
Matos Fernandes neste ciclo de governação, mas retirando o exemplo deste último,
que tem resistido bem no âmbito de um arcaboiço técnico e cultural que até dá
para meter na ordem os novos inquisidores-mor (feliz expressão do meu colega de
blogue) como José Gomes Ferreira da SIC, as coisas não têm corrido bem aos outsiders
daquele círculo cada vez mais estreito de recrutamento. E a comunicação social
que faz parte da reprodução daquele círculo não dá tréguas aos que o ousam
penetrar. Noutros ciclos de governação do PS, Elisa Ferreira foi também uma grande
exceção aquela regra, sobretudo por razões de grande apuro técnico e de uma passagem
brilhante pelo Parlamento Europeu.
Poderá dizer-se que
alimento com esta perspetiva uma perspetiva cabalística da política centrada
nos interesses da capital. Não se trata necessariamente de algo cabalístico.
Trata-se antes do resultado de redes poderosas de concentração de recursos humanos
na capital que acabam por fluir naturalmente, como convém à captura do interesse
público. É um processo endogâmico de reprodução política, largamente responsável
em meu entender pelo progressivo distanciamento da governação face ao país concreto,
o que transporta o conceito de coesão territorial para o abstrato. Essa reprodução
endogâmica transmite-se depois a determinados relatórios de instituições internacionais,
como a OCDE, aliás como o meu colega de blogue bem o assinalou. A explicação é
simples. Quem afinal é ouvido por essas instituições quando realizam as tais
missões-relâmpago a que chamam eufemisticamente mergulho no terreno? Os mesmos
de sempre que veiculam o discurso que pretendem que se imponha, pois o exterior
ainda tem muita força.
Pergunta-se: mas o que é
que os funerais e desaparecimentos de personalidades políticas têm que ver com
isto?
Se quiserem ter a maçada
de dedicar alguma atenção ao material de que a comunicação social se faz eco a propósito
das palavras póstumas que muita gente emite sobre quem desaparece podem observar
uma certa regularidade. Da direita à esquerda mais extrema, por exemplo o caso
mais recente de Arnaldo Matos, toda a gente se conhece e se considera amigos
muitas vezes do peito dos desaparecidos. O círculo é do mesmo tipo, é tudo boa
gente. Talvez tenham desaparecido alguns símbolos e espaços icónicos da Lisboa
que acolhia essa transversalidade. O Monte Carlo, o Procópio, para alguns mais
ousados o Elefante Branco (dizem-me que reabriu) e outros do tipo. Mas a miscigenação
existe. A última carta-texto de Vítor Ramalho a propósito da personalidade de
Arnaldo Matos é de fazer chorar a calçada mais hirta. E assim vão evoluindo as
coisas, as solidariedades dos tempos do PREC vão dando lugar a outras”solidariedades”,
as que vão alimentando a governação, ambas em círculos cada vez mais fechados
até ao esgotamento.
Podem questionar-me trazendo
para a discussão o argumento de que há as bases partidárias de âmbito distrital
e local que com o seu comportamento reivindicativo e aguerrido podem bloquear
esta dinâmica do afunilamento dos círculos do recrutamento para a governação. Não
seria tão otimista quanto a essa possibilidade. Muitos desses interesses contentam-se
com pequenas colheitas locais do bolo do poder, alimentando redes pessoais de círculos
também restritos, mas longe da capital. Outros vão alimentando o background da
governação. Outros ainda descem até ao Parlamento. Mas será que a lógica da governação
é refrescada por essas vias? Duvido e escasseiam as evidências para o poder
admitir.
Atenção por isso ao novo
governo pós eleições e já agora, e sem pretender ser indelicado ou mórbido,
atenção aos próximos epitáfios.
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