(A Caixa Geral de Depósitos e as peripécias que quinze ou
mais anos de gestão pública nos têm oferecido transformaram-se num imenso
nevoeiro a pairar sobre uma superfície pantanosa. E nesse espesso nevoeiro há figuras e
personalidades, algumas das quais conhecemos ou quem já privámos de perto, que
enfrentam o risco, injusto para algumas delas, de nesse nevoeiro de
interrogações e suspeições, serem engolidas pela voragem de, na prática, muitos
malandros e artistas portugueses quererem privatizar ou utilizar privadamente
em seu proveito um banco público.)
Gostaria de começar por explicitar alguma incomodidade acerca do racional
politicamente atribuído à existência de um banco público como a CGD. Os
argumentos que tenho ouvido não me convencem. Sobretudo, porque a grande
maioria desses argumentos é elaborada sob o pressuposto de um contexto de
inserção das atividades desse banco público que é simplesmente imaginário. Ou
seja, não corresponde ao ambiente concorrencial e de regulação por parte do BCE
e das regras da concorrência a nível da União Europeia que a CGD tem de
suportar e fazer pela vida. Como é óbvio, não sou um neoliberal desesperado a
ponto de transformar essa minha incomodidade em argumento para defender a
privatização da Caixa. Longe disso e estou convicto de que não estou a entrar
em contradição. Mas também tenho a convicção de que os pontos mais nebulosos ou
mesmo negros da gestão da Caixa nos últimos quinze anos colocam os defensores
do banco público sob o fogo dos que utilizam essas peripécias para fazer a
graçola de que afinal a CGD foi “privatizada” ao sabor de alguns interesses
privados, disfarçados de políticos. Além disso, não me impressiona
rigorosamente nada o tipo de grandes declarações programáticas do tipo das que
Jorge Coelho costumava proferir na defunta Quadratura quando dizia que não
imaginava Portugal sem um banco público robusto e à prova de qualquer crise
financeira, seguindo as pisadas das economias avançadas. Declarações desse tipo
se não forem acompanhadas de uma rigorosa explicitação do que queremos (e
podemos) fazer com a banca pública não significam rigorosamente nada.
Os que defendem, como eu, a necessidade de uma intervenção pública
inteligente e reparadora das diatribes do mercado não são ingénuos a ponto de
ignorarem a questão relevante da captura do Estado por parte de interesses
privados. Aliás, é sobretudo contra o capitalismo rentista que se alimenta
dessa captura, por vezes fraudulenta e corrupta, do interesse público que a
minha conceção de reformismo político se orienta e motiva.
Mas não é esse nevoeiro que me preocupa neste post. O que para mim é chocante é a roleta russa em que o setor
financeiro está mergulhado, a ponto de salpicar com suspeições e interrogações
gente competente, que fez do setor financeiro e bancário a sua especialização
profissional, tenha ou não estado envolvido em colocar a sua assinatura em
concessões de créditos específicos. No caso da CGD, todas aquelas decisões
estranhas em matéria de concessão de crédito, não propriamente apenas as
relacionadas com apoio a investimentos produtivos que se revelaram ruinosos,
mas sobretudo as relacionadas com financiamentos a projetos de poder pessoal e
acionário, salpicam gente que pode inclusivamente não ter sido chamada a
decidir. A reconstituição desses processos de concessão de crédito é pura filigrana de averiguações. Não acredito que a sua
reconstituição no âmbito da Comissão de Inquérito parlamentar nos conduza a
resultados fidedignos e equilibrados. A presença das câmaras de televisão e dos
microfones apontados às audições já em pleno ambiente eleitoral dificilmente nos
conduzirá a uma efetiva separação do trigo do joio. Talvez a própria CGD carenciada
de ressarcir as suas perdas e encontrar culpados possa internamente distinguir o
que há para distinguir.
Nestes processos, tenho que para mim que terá havido decisões de crédito na
onda dos caminhos da economia portuguesa para a ilusão dos não transacionáveis
e das elevadas e apelativas rendibilidades que essa alocação de recursos então
proporcionava. Em analogia com o que se passa nos mercados bolsistas especulativos
em que, regra geral, o mexilhão é sempre o último a entrar, também em matéria
de decisões de crédito, quanto mais tardias elas são do ponto de vista da proximidade
ao inevitável mais gravosas e estranhas tendem a ser. Surfar a onda dos não
transacionáveis como se surfou abundantemente em Portugal não é gravosamente
independente da fase da onda em que se entra, por muito gigante que ela se
apresente. Ainda assim, distingo esse caráter de gravidade de decisões assumidas
apenas do ponto de vista do mero apoio a caprichos de poder, segundo uma rede
de cumplicidades inconfessáveis e de um favor que paga um outro num jogo interminável
de um aparente win-win quando o não é, declaradamente.
Quanto à onda dos não transacionáveis, tenho a consciência tranquila de que
na oportunidade que tive, a da avaliação do QCA III, alertei nesse exercício
que a alocação de recursos na economia portuguesa se estava a desviar
perigosamente para os serviços e não transacionáveis, com efeitos nos preços relativos
e nas rendibilidades do capital consoante a sua alocação. Esse desvio era tão
visível que os grandes grupos empresariais não o escondiam nas suas decisões de
investimento. Também sei que embora essa avaliação tenha sido amplamente
discutida no plano técnico não chegou ao radar da decisão política. Mas disso não
tenho culpa no cartório.
Com todo este nevoeiro de suspeições e interrogações a pairar por aí e envolvendo
gente conhecida dou frequentemente comigo a alinhar com a mediania bem portuguesa
de que vale mais uma vida de universitário e de consultor com modéstia de ambições,
vivendo tranquilamente com as suas opções, do que ambições de grande notoriedade
alimentadas por passagens pelo sistema financeiro. Não deveria ser assim e nem
uma ponta de inveja o determina. A verdade é que o contexto das grandes ondas como
aquela que vivemos produz um ambiente de grandes riscos e para os quais seria necessário
um batalhão de McNamara’s.
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