quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

NEVOEIRO



(A Caixa Geral de Depósitos e as peripécias que quinze ou mais anos de gestão pública nos têm oferecido transformaram-se num imenso nevoeiro a pairar sobre uma superfície pantanosa. E nesse espesso nevoeiro há figuras e personalidades, algumas das quais conhecemos ou quem já privámos de perto, que enfrentam o risco, injusto para algumas delas, de nesse nevoeiro de interrogações e suspeições, serem engolidas pela voragem de, na prática, muitos malandros e artistas portugueses quererem privatizar ou utilizar privadamente em seu proveito um banco público.)

Gostaria de começar por explicitar alguma incomodidade acerca do racional politicamente atribuído à existência de um banco público como a CGD. Os argumentos que tenho ouvido não me convencem. Sobretudo, porque a grande maioria desses argumentos é elaborada sob o pressuposto de um contexto de inserção das atividades desse banco público que é simplesmente imaginário. Ou seja, não corresponde ao ambiente concorrencial e de regulação por parte do BCE e das regras da concorrência a nível da União Europeia que a CGD tem de suportar e fazer pela vida. Como é óbvio, não sou um neoliberal desesperado a ponto de transformar essa minha incomodidade em argumento para defender a privatização da Caixa. Longe disso e estou convicto de que não estou a entrar em contradição. Mas também tenho a convicção de que os pontos mais nebulosos ou mesmo negros da gestão da Caixa nos últimos quinze anos colocam os defensores do banco público sob o fogo dos que utilizam essas peripécias para fazer a graçola de que afinal a CGD foi “privatizada” ao sabor de alguns interesses privados, disfarçados de políticos. Além disso, não me impressiona rigorosamente nada o tipo de grandes declarações programáticas do tipo das que Jorge Coelho costumava proferir na defunta Quadratura quando dizia que não imaginava Portugal sem um banco público robusto e à prova de qualquer crise financeira, seguindo as pisadas das economias avançadas. Declarações desse tipo se não forem acompanhadas de uma rigorosa explicitação do que queremos (e podemos) fazer com a banca pública não significam rigorosamente nada.

Os que defendem, como eu, a necessidade de uma intervenção pública inteligente e reparadora das diatribes do mercado não são ingénuos a ponto de ignorarem a questão relevante da captura do Estado por parte de interesses privados. Aliás, é sobretudo contra o capitalismo rentista que se alimenta dessa captura, por vezes fraudulenta e corrupta, do interesse público que a minha conceção de reformismo político se orienta e motiva.

Mas não é esse nevoeiro que me preocupa neste post. O que para mim é chocante é a roleta russa em que o setor financeiro está mergulhado, a ponto de salpicar com suspeições e interrogações gente competente, que fez do setor financeiro e bancário a sua especialização profissional, tenha ou não estado envolvido em colocar a sua assinatura em concessões de créditos específicos. No caso da CGD, todas aquelas decisões estranhas em matéria de concessão de crédito, não propriamente apenas as relacionadas com apoio a investimentos produtivos que se revelaram ruinosos, mas sobretudo as relacionadas com financiamentos a projetos de poder pessoal e acionário, salpicam gente que pode inclusivamente não ter sido chamada a decidir. A reconstituição desses processos de concessão de crédito é pura filigrana de averiguações. Não acredito que a sua reconstituição no âmbito da Comissão de Inquérito parlamentar nos conduza a resultados fidedignos e equilibrados. A presença das câmaras de televisão e dos microfones apontados às audições já em pleno ambiente eleitoral dificilmente nos conduzirá a uma efetiva separação do trigo do joio. Talvez a própria CGD carenciada de ressarcir as suas perdas e encontrar culpados possa internamente distinguir o que há para distinguir.

Nestes processos, tenho que para mim que terá havido decisões de crédito na onda dos caminhos da economia portuguesa para a ilusão dos não transacionáveis e das elevadas e apelativas rendibilidades que essa alocação de recursos então proporcionava. Em analogia com o que se passa nos mercados bolsistas especulativos em que, regra geral, o mexilhão é sempre o último a entrar, também em matéria de decisões de crédito, quanto mais tardias elas são do ponto de vista da proximidade ao inevitável mais gravosas e estranhas tendem a ser. Surfar a onda dos não transacionáveis como se surfou abundantemente em Portugal não é gravosamente independente da fase da onda em que se entra, por muito gigante que ela se apresente. Ainda assim, distingo esse caráter de gravidade de decisões assumidas apenas do ponto de vista do mero apoio a caprichos de poder, segundo uma rede de cumplicidades inconfessáveis e de um favor que paga um outro num jogo interminável de um aparente win-win quando o não é, declaradamente.

Quanto à onda dos não transacionáveis, tenho a consciência tranquila de que na oportunidade que tive, a da avaliação do QCA III, alertei nesse exercício que a alocação de recursos na economia portuguesa se estava a desviar perigosamente para os serviços e não transacionáveis, com efeitos nos preços relativos e nas rendibilidades do capital consoante a sua alocação. Esse desvio era tão visível que os grandes grupos empresariais não o escondiam nas suas decisões de investimento. Também sei que embora essa avaliação tenha sido amplamente discutida no plano técnico não chegou ao radar da decisão política. Mas disso não tenho culpa no cartório.

Com todo este nevoeiro de suspeições e interrogações a pairar por aí e envolvendo gente conhecida dou frequentemente comigo a alinhar com a mediania bem portuguesa de que vale mais uma vida de universitário e de consultor com modéstia de ambições, vivendo tranquilamente com as suas opções, do que ambições de grande notoriedade alimentadas por passagens pelo sistema financeiro. Não deveria ser assim e nem uma ponta de inveja o determina. A verdade é que o contexto das grandes ondas como aquela que vivemos produz um ambiente de grandes riscos e para os quais seria necessário um batalhão de McNamara’s.

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