(Os materiais que inspiram este post têm uma distância no tempo de 95 anos, o que é obra. Encontro neles um fio comum. Trata-se de não
alimentar uma perspetiva passiva sobre o que é solicitado aos economistas no
seu tempo e de refletir continuamente sobre as ferramentas de pensamento que
estes devem utilizar para responder aos desafios do seu tempo.)
Em 1924, mais
propriamente no mês de setembro, Keynes assinou no The Economic Journal um
dos epitáfios mais profundos que talvez alguma vez tenha sido escrito sobre um
economista, Alfred Marshall. Graças ao trabalho valioso da Royal Economic
Society e ao seu trabalho de colaboração com a editora Wiley, o JSTOR proporciona-nos
hoje edições digitais de todo o vasto espólio dessa revista britânica e a ele
recorri para regressar ao vigor daquele texto de Keynes. 95 anos passaram sobre
essa publicação e já se me varreu da memória o momento lá atrás quando o
revisitei para na altura compreender o fascínio que os economistas do território
alimentavam sobre a obra de Marshall.
Para os desígnios do
post de hoje terei de citar, com a desculpa da insuficiência da minha tradução
para português, já que a prosa de Keynes exigiria outros voos:
“(…) O estudo da economia parece não exigir quaisquer dons especializados e
transcendentes. Não é a economia, do ponto de vista intelectual, um assunto muito
fácil quando comparado com os ramos superiores da filosofia e da ciência pura?
Mesmo que sejam bons, ou mesmo competentes, são pássaros dos mais raros. Um assunto
acessível, mas no qual poucos atingem a excelência. O paradoxo explica-se,
talvez, porque o economista-chefe tem de possuir uma combinação rara de dons. Ele
tem de atingir um padrão elevado em várias direções diferentes e tem de
combinar talentos que não é fácil encontrar conjuntamente. Ele tem de ser, em
alguma medida, matemático, historiador, homem de estado, filósofo. Tem de compreender
símbolos e expressar-se por palavras. Tem de considerar o particular em termos
do geral e tocar o abstrato e o concreto no mesmo golpe de pensamento. Deve
estudar o presente à luz do passado para compreender o futuro. Nenhuma parte da
natureza humana ou das suas instituições podem permanecer totalmente fora do
seu olhar. Tem de se afirmar simultaneamente por propósitos e ser desinteressado;
distante e incorruptível como um artista, tem por vezes de estar perto do mundo
como um político. Marshall possuía muitas mas não todas estas características.
Mas no essencial a sua aprendizagem diversificada e a sua natureza dividida dotaram-no
do dom necessário aos economistas mais essencial e fundamental – era um
proeminente historiador e matemático, um dealer simultaneamente do particular e
do geral, do temporal e do eterno” (The Economic Journal, 1924, setembro, pp.322-3239.
Bastaria esta longa citação
para nos entreter durante uma longa noite. Se há 95 anos Keynes chamava a atenção
para a raridade da combinatória de talentos que, na sua perspetiva, os
economistas necessitavam de possuir, hoje essa combinatória talvez seja ainda
mais rara e explique a razão pela qual esta parte da elite é tão esquecida e
menosprezada.
Mas há quem se recuse a dar
essa irrelevância e esse menosprezo por adquiridos. Já aqui referi a importância
de alguns movimentos de estudantes de economia em algumas universidades
prestigiadas do Reino Unido e dos EUA na criação de um clima de exigência a partir
de quem é ensinado como combate à inércia do mainstream económico que se reproduz pelos mecanismos conhecidos de
controlo da produção e da disseminação do conhecimento.
Hoje, gostaria de trazer
ao espaço deste blogue dois movimentos, organizados em redes a que poderemos
aderir.
O primeiro é o update de fevereiro de 2019 do projeto
CORE (link aqui). Este projeto para além de um manual publicado pela Oxford University
Press, The Economy, Economics fora Changing world, tem
à disposição de quem quer ensinar economia para os nossos tempos, sem se sujeitar
às balelas do mainstream mais rasca, um vasto manancial de recursos letivos,
pedagógicos e de envolvimento dos estudantes. O que eu daria por um breve regresso
ao passado e poder ensinar com todos este vasto manancial.
O segundo movimento aparece
ligado a um dos mais estimulantes economistas do nosso tempo, Dani Rodrik. Trata-se
de uma rede de economistas comprometidos com uma economia e uma sociedade inclusiva (link aqui).
Esta rede proporciona-nos para já um e-book (link aqui) sobre o tema fundador e um conjunto
de policy briefs, assinados pelos
economistas que estão na raiz da rede.
Poderemos dizer que a
excelência e a combinação de competências e talentos de que Keynes falava não
estarão ao alcance dos vulgares mortais que querem ter um exercício honesto e
rigoroso da sua profissão e da sua atividade de investigação. É natural que a
excelência defina padrões exigentes. Keynes era a excelência no seu tempo e por
isso o seu texto tem de ser lido nesse contexto. O que é impressionante é que essa exigência se mantenha atual 95 anos depois. Mas não faltam hoje
instrumentos e redes que podem auxiliar quem não se resigna a reproduzir a inércia, preferindo olhar para os desafios do seu tempo.
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