(Começo por uma explicitação de interesses. Sou amigo e tenho
uma grande admiração pelo Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes e trabalhei
de perto com ele durante alguns anos. Isso não impede que problematize as suas declarações
sobre o pretenso fim anunciado dos motores a diesel.)
Não vou discutir as palavras do JPMF do ponto de vista político. Elas são
claras e gosto de membros do Governo que falem claro. Além disso, o Governo tem
toda a legitimidade para explicitar a sua opção política por alcançar ganhos de
descarbonização na economia e por promover padrões mais intensos de mobilidade
sustentável nas nossas cidades e territórios. Estou com esses propósitos e é
bom que os responsáveis políticos se pronunciem clara e ativamente sobre as suas
opções e que as submetam com essa clareza ao escrutínio eleitoral. A política
valoriza-se por essa via e não por meias tintas tímidas e receosas. O que
ficamos a saber pelas declarações de JPMF é que o governo em funções aposta na
mobilidade sustentável e em ganhos de descarbonização que se vejam e que tudo
fará, no que estiver ao seu alcance, para promover políticas públicas em conformidade
com tais opções. É esse o papel dos governos e dos políticos, anunciar as mudanças
em que acredita e os objetivos que pretende atingir e submetê-las a escrutínio
democrático. Outra coisa bem distinta é a maneira como os interesses
estabelecidos reagem a essas opções.
Mas não é nesse âmbito que me apetece refletir sobre as palavras de JPMF,
que como seria de esperar agitaram a inércia nacional. O meu interesse na questão
é que a questão dos motores diesel encerra
uma das matérias mais fascinantes da história da tecnologia, sobre a qual as
minhas incursões académicas pela economia da tecnologia e da inovação me
proporcionaram valiosos elementos de reflexão sobre a evolução das tecnologias. Nathan Rosenberg é uma visita obrigatória.
A matéria que subjaz às palavras de JPMF é a do confronto entre paradigmas
tecnológicos, designadamente entre paradigmas já instalados e paradigmas
candidatos a uma pretensa e desejável supremacia face aos instalados. No caso
concreto, esse confronto acontece entre a tecnologia dos motores diesel e a dos
motores elétricos, seja 100% elétricos ou envolvendo modalidades híbridas como os
elétricos Plug in que combinam com a utilização de gasolina.
A primeira questão que este confronto suscita é a do estádio de
desenvolvimento desse confronto. De facto, tanto pode tratar-se de um confronto
de contornos iniciais em que a tecnologia emergente realiza os seus primeiros
ensaios, como podemos estar a falar de estádios mais avançados desse confronto,
aos quais corresponde já a uma presença da tecnologia emergente no mercado e a
estádios de réplica e transformação da tecnologia incumbente que não podem ser
ignorados. Diga-se que tenho alguma dificuldade em situar o atual estádio do
confronto entre diesel e elétricos. Não
estaremos já num estádio puramente inicial, mas tenho alguma dificuldade em
situar a que maturação o confronto hoje corresponde.
Uma segunda ideia que a história e a economia da tecnologia e da inovação
me trouxeram é que o confronto nunca pode ser reduzido a uma simples comparação
de valor intrínseco de tecnologias. De facto, as prateleiras de monos tecnológicos
que nunca se impuseram estão cheias de casos de tecnologias cujo valor intrínseco
era indiscutivelmente superior mas que foram suplantadas por tecnologias
concorrentes. Isto significa que o processo de afirmação de uma tecnologia envolve
outras variáveis de contexto que podem assumir um papel nevrálgico na criação e
condições para a afirmação de uma dada tecnologia sobre as suas concorrentes. É
o caso das políticas públicas, do aparato de regulação, dos contextos de formação
superior e avançada de suporte, do poder económico intrínseco dos seus
promotores, da existência de tecnologias complementares (linkages) que podem
acelerar a ocorrência de rendimentos crescentes e até o efeito clube de grupos
de consumidores.
Uma terceira ideia relevante é que não devemos ignorar a resiliência e o
poder de transformação das tecnologias incumbentes que as emergentes pretendem
destronar. No caso dos motores diesel, seria insensato ignorar a sua espantosa
transformação, que está muito para além do pé na argola dos principais construtores
quando viciaram dados de emissões. Se há palavra que podemos associar a inovação
é indeterminação. Os confrontos de tecnologias são corridas de fundo num mundo estranho
em que os espectadores podem intervir na corrida, com uma grande indeterminação
dos períodos em que a resiliência dos incumbentes se concretiza e em que as
tecnologias emergentes dão o golpe de misericórdia.
Finalmente, em estádios como o do confronto aqui em análise, a velocidade
de transformação das tecnologias emergentes é vertiginosa. Poderemos imaginar,
embora sem a possibilidade de o determinar com rigor, que o valor de uma
viatura elétrica hoje adquirida não terá provavelmente comparação possível com uma
nova viatura elétrica que possamos adquirir daqui a 10 anos. Ou seja, quer os
comparadores de diesel, quer os comparadores de elétricos estão perante a
indeterminação.
O que JPMF nos disse é que da parte das políticas públicas haverá a intenção
de favorecer as emergentes em relação às incumbentes, pela necessidade de
atingir objetivos societais mais vastos. Isso basta-me.
E já não estou a complicar com a admissão de uma outra hipótese: poderá aparecer
na corrida um terceiro e novo concorrente
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