(Illustration by Sam Whitney/The New York Times; images via Getty Images)
(Mais do que discutir se o otimismo de António Costa é ou não irritante, a propósito vejo pouca gente interessada em analisar as razões de Portugal ser provavelmente o país que terá o crescimento mais elevado em 2022, sobretudo num país em que tanto se fala de crescimento, interessa-me discutir a eventualidade de uma recessão mundial em que estamos mergulhados. Estamos de novo num momento em que se torna claro que à globalização, por mais interrogada que ela hoje se apresente, não corresponde um modelo de governação que minimize externalidades negativas da não cooperação voluntária. E como se dizia em tempos em bom “futebolês” que depois de tudo ganhava a Alemanha, apetece-me recorrer a essa metáfora para analisar o cenário mundial de uma recessão.
As origens imediatas do surto inflacionista que abalou a economia americana em plena recuperação pandémica e guerra na Europa são conhecidas, tendo ao longo do tempo mais recente oscilado bastante a composição dos dois grupos de análise, o que pensou o fenómeno como temporário e o que desde o início alertou para a sua dimensão estrutural. As causas são uma combinação de duas coisas: efeitos de oferta associados à disrupção pandémica e à guerra da Ucrânia e efeitos de procura determinados por um estímulo pandémico às famílias americanas que prolongaram o efeito consumo mesmo com problemas de formação de oferta.
Depois de alguma hesitação (refletindo o conflito fenómeno temporário versus fenómeno estrutural), o Banco Central americano começou inapelavelmente a subir as taxas de juro de referência para controlar, via política monetária, a inflação. Seja porque os investidores internacionais vieram em procura do dólar como reserva de valor, seja para adquirir títulos no mercado americano, o dólar iniciou uma sustentada valorização face às moedas que integram o cabaz em função do qual é determinado o valor da moeda americana.
Essa subida das taxas de juro de referência e valorização da moeda americana tenderam imediatamente a gerar fatores de perturbação na economia mundial. A generalidade dos países, emergentes ou não, fortemente endividados ou não, que importam mercadorias em dólares viram obviamente a sua capacidade de importação substancialmente diminuída, dada a desvalorização das suas moedas em relação à moeda americana, para além da chamada inflação externa ou importada começar também a penalizar essas economias. E naturalmente os respetivos bancos centrais tiveram de intervir, assistindo-se hoje a uma generalizada e convergente subida de taxas de juro de referência em todos os países, criando assim condições para a disseminação global da recessão. Obviamente também os países que têm as suas dívidas denominadas em dólares viram agravado o seu serviço da dívida, tendendo a aumentar o seu peso em relação às exportações desses países.
O economista e historiador americano Adam Tooze chama a atenção no New York Times (link aqui) para o facto inusitado de assistirmos a um aperto de política monetária praticamente generalizado, criando assim as condições para uma recessão também sincronizada, isto é, mundial. E aqui temos a clara indicação da existência de uma externalidade negativa devido ao facto da políticas monetárias serem simplesmente reativas e não obedecer a um acordo estruturado. Tal acordo reduziria seguramente as dimensões recessiva e de desemprego que o controlo da inflação e dos efeitos da valorização do dólar estão a determinar. A globalização nunca teve um modelo de governação apesar dos simulacros de cimeiras eficazes do G-20 e de outros coletivos de países.
O economista americano identifica três interrogações cruciais: (i) são as taxas de juro de referência dos bancos centrais o instrumento mais pertinente para gerir os desequilíbrios já instalados na economia mundial?; (ii) serão os Bancos Centrais capazes de fixar a taxa de juro pertinente para controlar a inflação e não gerar uma recessão devastadora?; (iii) sobreviverá uma economia mundial endividada à subidas das taxas de juro americanas. Não há respostas inequívocas para estas interrogações. E obviamente o próprio FED sabe que a subida das taxas de juro de referência não vai resolver os problemas energéticos suscitados pela invasão russa da Ucrânia e que a sua influência na diminuição do investimento vai perturbar ainda as limitações de oferta que a economia mundial hoje vive. O FED USA dar-se-á por satisfeito se conseguir evitar que a inflação se entrincheire nas expectativas.
Mas o que parece evidente e tragicamente paradoxal é a assimetria do que se passa entre a moeda dominante e as moedas subordinadas. Nos EUA, a subida das taxas de juro de referência tende a valorizar o dólar, a embaratecer as importações e assim influenciar adicionalmente a descida da inflação. Nos países de moeda subordinada, sucede rigorosamente o contrário. A subida das taxas de juro de referência coexiste com a desvalorização das respetivas moedas, o que determina a necessidade de que a subida das taxas de juro de referência nesses países tem de ser maior para conseguir o mesmo efeito sobre a inflação, já que com desvalorização as importações são mais caras, intensificando por essa via a inflação.
Tooze interroga-se sobre o vício de se combater um risco global com políticas país a país. Também penso nessa contradição, mas isso é uma questão que deveria estar em cima da mesa da reforma da globalização já há muito tempo e não agora com as calças na mão. Simultaneamente, os liquidacionistas tão amantes das recessões para limpar a impureza das economias esfregam as mãos entusiasmados com a amplitude esperada para os efeitos recessivos a que se juntarão exemplos de bancarrota financeira. Os liquidacionistas sempre pensaram que o longo período de taxas de juro nulas ou negativas (o chamado zero lower bound) era artificial e que geraram comportamentos descuidados de investimento, daí a necessidade da limpeza dos incautos e inadaptados. Mas caros liquidacionistas, estão seguros que esse longo movimento foi assim tão artificial? Será que as forças redutoras do crescimento económico, declínio demográfico impactando decisivamente o produto potencial das economias, e a relativa modéstia de ritmos de crescimento que a inovação tecnológica atual está efetivamente a proporcionar, terão desaparecido? Ou teremos de reler os contributos velhinhos de Wicksell sobre a taxa de juro natural? Krugman pensa que sim e acho que a evolução futura lhe vai dar razão (link aqui).
Refletindo uma estranha ignorância sobre os rumos do crescimento potencial, a nossa direita estabelecida e os economistas a ela vinculados continuam a reclamar para Portugal ritmos de crescimento económico irlandeses ou estonianos que, face a esse contexto de fraco produto potencial, tenderão a ser pouco prováveis. E curiosamente são os mesmos que consideram a possibilidade de em 2022 Portugal ser o que mais cresce na União um assunto banal.
Já não há pachorra para os aturar!
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