quarta-feira, 19 de outubro de 2022

NOVOS PERSONAGENS NA CIÊNCIA ECONÓMICA

 

                                        (Stefanie Stantcheva no Finances&Development do FMI)

(A força do chamado mainstream em economia, medida por exemplo pelo ranking de citações ou pelo impacto das revistas em que o pensamento económico é publicado e prolongada pelos mecanismos de reprodução do conhecimento, tende a dificultar a emergência e notoriedade de personagens que façam a diferença. Como é compreensível, a notoriedade da diferença torna-se mais acentuada quando aos novos personagens se associa uma perspetiva mais disruptiva. Ora, em economia, ser disruptivo e fazer escola é uma tarefa de grande exigência. Mas, por vezes, a questão tem mais nuances do que parece, pois embora mantendo a frequência da teoria económica de grande rigor formal e matemático, que é uma das dimensões do mainstream e do reconhecimento entre pares, surgem novos personagens que ousam inovar noutras dimensões, adquirindo rapidamente notoriedade, reconhecimento entre pares e chamando a atenção de governos e instituições internacionais. Parece-me ser este o caso da economista Stefanie Stantcheva, que já foi referida neste espaço de reflexão pelo menos uma vez, a propósito de trabalho conjunto com o prestigiado Dani Rodrik da Kennedy School de Harvard. O retorno a Stantcheva é o tema do post de hoje, sobretudo porque a sua obra está em linha com algumas das dimensões do nosso tempo económico – o modo como os cidadãos interpretam, reagem e moldam comportamentos em função da política económica.)

Através do artigo que a revista Finances&Development do FMI dedica a esta economista (link aqui), é possível aceder a um dos seus artigos com mais impacto na comunidade académica internacional. Data de 2017 e intitula-se “Optimal Taxation and Human capital Policies over the Life Cycle”. Uma simples leitura do artigo mostra-nos imediatamente uma grande densidade formal e matemática, o que evidencia a presença de um artigo escrito para pares muito especializados com conhecimentos de modelização matemática que não estão ao alcance de muitos. Neste tipo de artigos confesso que leio introdução e conclusões, já que não tenho competências de formalização matemática para seguir todo o seu conteúdo. Só o refiro aqui para mostrar que desse ponto de vista Stantcheva se move como peixe na água no domínio do mainstream. Mas se pensarmos que o objetivo de Stancheva é equacionar a relação entre os investimentos na educação superior e a formação de capital humano ao longo de um ciclo de vida, compreendemos imediatamente que o artigo tem uma enorme relação com um problema de grandes proporções na economia americana, que é a insustentabilidade da dívida dos estudantes americanos que contraíram empréstimos para completar a sua formação superior. Questão de gravidade tal que, recentemente, Joe Biden se viu forçado a perdoar dívida, pois a insustentabilidade do cumprimento poderia acrescentar novos fatores de instabilidade ao sistema bancário e financeiro.

Não é, por conseguinte, o elevado apuro formal da obra de Stantcheva que me interessa destacar, até porque se trata de um mundo do qual estou afastado. O que me parece relevante é que Stantcheva faz parte de um grupo de novos economistas fortemente interessados no modo como os cidadãos normais reagem a decisões de política económica, estudando designadamente as diferenças entre perceção e realidade, cruciais para compreender como é que certos instrumentos de política geram reações perversas totalmente em contradição com os objetivos últimos em função dos quais foram concebidos e com os resultados esperados. Esta questão é de uma importância crucial num mundo em que se perfilam políticas para as quais é decisivo compreender antecipadamente

Em linha com essa corrente de pensamento, Stantcheva esteve na criação de um dos mais importantes laboratórios da universidade de Harvard, o Social Economics Lab, alinhando numa orientação que está a marcar estruturalmente a evolução das equipas de investigação em economia. Estes laboratórios, sobretudo os de maior notoriedade, organizam-se em torno de massas críticas pluridisciplinares como nunca antes se viram, revolucionando de cima a baixo os modos de fazer investigação em economia. Seria interessante ver qual a evolução em Portugal nesta matéria. Penso que só por esta via, as ciências sociais e a economia em particular poderão disputar algum protagonismo na atribuição de fundos públicos à investigação científica, num país em que as ciências da vida e as ciências da engenharia disputam a primazia nessa distribuição.

Também sem surpresa, Stefanie Stantcheva integrou juntamente com Dani Rodrik o grupo do Conselho para a Análise Económica criado por Emmanuel Macron para abordar o que fazer depois da crise pandémica. Stancheva e Rodrik ficaram com o tema da desigualdade e como tratá-la, podendo aqui sugerir matreiramente a ideia de que Macron ainda anda às voltas com a compreensão da revolta dos Gilets Jaunes, em riscos de ser reeditada hoje com a reação brutal às subidas de preços que as manifestações em França desta semana estão a representar.

Um outro exemplo da possível utilidade da abordagem com que Stantcheva trabalha é a das políticas de descarbonização. Ninguém esquece que os Coletes Amarelos começaram com uma mal divulgada e pretensa política fiscal de suporte à descarbonização, concebida sem ligar patavina ao problema da desigualdade em que iria acontecer e agravar. As políticas de descarbonização pressupõem alterações de comportamentos de famílias e cidadãos que ou são bem compreendidos e antecipados ou dão para o torto. A França comanda o processo de experimentação e aprendizagem com Le Pen à espreita para capitalizar a impreparação ou a precipitação.

Mas há um ponto final que talvez nos conduza à questão mais relevante suscitada por este post. Stancheva refere à jornalista do Finances&Development que o seu objetivo é encontrar explicações que sejam úteis para melhorar a compreensão das pessoas quanto ao aspeto central das políticas que vão moldar as suas vidas diárias. É um grande propósito numa época em que a socialização do conhecimento em economia anda pelas ruas da amargura. Oscilamos entre o extremo da banha da cobra (estilo José Gomes Ferreira na SIC) e o hermetismo comunicacional da economia mais académica, mesmo que também neste campo haja os palradores de serviço. Mas a grande questão permanece a mesma: como é que uma economia de grande rigor formal e matemático é comunicada às gentes que têm de compreender os seus resultados para melhor perceber as políticas públicas que “moldam as suas vidas”?

É uma boa questão, não é?

 

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