(Na qualidade de apoiante crítico e contributivo do governo de António Costa que assumo sem qualquer problema de consciência, tenho de admitir que desvalorizei bastante o temor que por aí se levantou sobre os eventuais riscos ou perigos de uma maioria absoluta na governação. Entendi, e na altura tinha fundamentos para isso, que esses riscos iriam ser permanentemente ponderados pelo coletivo de ministros e secretários de Estado, não me parecendo então difícil superar derivas e tentações. É verdade que, ponderada a gestão relativamente eficiente da pandemia, ninguém previra o encavalitamento da recuperação pandémica com uma guerra na Europa, conjuntura exigente para qualquer governo. Mas mesmo assim admiti que um contexto dessa natureza com maioria absoluta seria mais facilmente enfrentado. O confronto desta minha posição com os factos e evidências do dia a dia da governação leva-me a reconsiderar a minha avaliação inicial e a perceber que a coisa pode ficar preta em matéria de solidez da maioria absoluta do PS. Vale a pena por isso refletir sobre o erro de desvalorização a que aludi há pouco.)
Esta reflexão emerge de um acumular de evidências, essencialmente combinadas em perspetiva a partir do momento em que vi esta semana António Costa na Assembleia da República com ar de ladino gingão, aproveitando é certo uma oposição que tarda a encontrar o tom e o ponto certos da sua crítica ao governo. Da exuberância incontinente do Chega e sobretudo de André Ventura à histeria de um Paulo Rangel (este não no Parlamento) sobre o acordo entre Macron, Sánchez e Costa focado na questão do gás têm emergido situações que dariam cabo da paciência de um santo e António Costa não está obviamente na fila para a canonização. Mas aquele tom sobretudo dirigido aos inconsequentes protagonistas da Iniciativa Liberal, atingida em cheio pelos danos colaterais da histeria conservadora no Reino Unido e pela falácia da economia zombie da descida de impostos como estímulo ao crescimento económico, anuncia o pior em matéria do que virá por aí da parte do primeiro-Ministro.
E o que é mais intrigante é que as últimas semanas não tinham corrido propriamente mal a Costa. O acordo na concertação social pode ser desvalorizado pelos mais críticos dada a fragilidade atual do movimento sindical não comunista, mas em termos de comunicação é um bom resultado nos tempos que correm de incerteza e indeterminação. Poderá também dizer-se que o acordo sobre o gás ainda tem de ser bastante melhor explicado, admitindo-se que possa ter sido um fogacho político sem tempo suficiente de maturação técnica, mas não é todos os dias que se desbloqueia um obstáculo comunitário e se tem um primeiro-Ministro português a fazer parte do core da negociação. E, para Costa, acabava de convergir com as posições do Presidente da República na crítica ao contributo que o BCE estará com a sua política restritiva a dar para o agravamento dos riscos de recessão séria na Europa.
Costa costuma dar sinais de uma outra segurança, tornando ainda mais inexplicável esta oscilação, até porque depois de ter andado a apanhar bonés a comunicação do governo parece ter encontrado um rumo de competência que lhe faltara nos últimos tempos.
Dei comigo a refletir sobre o que poderá estar a determinar esta oscilação de António Costa. Não pude deixar de identificar uma causa possível, que é afinal a sucessão de imensos casos mediáticos penalizadores da imagem do governo que se têm sucedido. No quadro atual da mediatização da atividade governativa, estes incidentes que se têm multiplicado, podem ser alguns inconsistentes e outros sobrevalorizados pela voracidade mediática do contrapoder, mas podem ser considerados como dissabores e tropelias da tal maioria absoluta sobre a qual tanta gente receou o pior.
Comecemos pelo caso da TAP. Conhecem a minha posição sobre o que eu considero ser a ilusão da importância do hub de Lisboa e a inviabilidade da chamada “companhia de bandeira” numa economia pequena como Portugal. Tenho frieza suficiente para não me comover com os saudosos de uma companhia que servia com rigor e distinção os clientes da executiva (guardanapo de pano aquecido), não deixando de tratar satisfatoriamente os passageiros da económica. Esse mundo do transporte aéreo desapareceu e as sucessivas tropelias cometidas por um Senhor brasileiro que trouxe o negócio ruinoso da compra da empresa de manutenção no Brasil sempre me fizeram antecipar o pior. Ora, quem governa muito tempo sujeita-se à evidência da contradição. É evidente a contradição alimentada pelo PS com a decisão sobre a TAP pública e depois querer encontrar desesperadamente um parceiro privado para se libertar o mais depressa possível do fardo incómodo. Neste domínio, o governo (e o próprio Pedro Nuno Santos vai cavando lentamente seu próprio enfraquecimento) está sob pressão no assunto TAP. Até porque a ideia do hub de Lisboa e do prestígio internacional da companhia vão sendo destruídos dia a dia, e basta ler a crónica de hoje de Clara Ferreira Alves na revista do Expresso, com a penúria de aviões, caos de cancelamentos, falta de respeito pelos clientes e desorganização que baste que a Madame CEO francesa já terá espiado amargamente a decisão que a trouxe a Lisboa. Tudo isto com uma ANA privatizada (disso o PS não tem culpa) a tornar cada vez mais o filme numa sessão de terror.
O outro tiro no porta-aviões da confiança do governo foi e continua a ser o tema das incompatibilidades. O país é pequeno, o campo de mobilização de ministros e secretários de Estado está cada vez mais limitado, toda a gente tem contas para pagar ao fim do mês, a rede de famílias de governantes está também cada vez mais apertada, Lisboa é uma grande família e por isso com uma lei atamancada tudo pode acontecer. E tem acontecido com as mais variadas situações. Reduzir a questão das incompatibilidades a uma questão estritamente legal é um enorme erro político. O cidadão em geral está-se borrifando para os pormenores da ginástica legislativa invocada por quem é apanhado no circuito. É um facto que a lei deve ser clara e sem malabarismos, mas para isso é necessário tomar a dianteira da sua revisão e explicar também com clareza o espírito da sua revisão. Mas cada executivo deve clarificar à partida os contextos económicos e profissionais dos seus membros. Estas situações corrigem-se à partida, antes do executivo estar constituído, e não se remendam a posteriori. É de accountability e de escrutínio políticos a priori que deve falar-se e não de jogos interpretativos da lei à medida das situações que vão emergindo e que se pretende corrigir. Do ponto de vista do desgaste político, o problema não é assim apenas uma questão de legalidade, mas também uma questão de ética e responsabilidade política. Neste último plano, a sucessão de casos faz mossa na credibilidade do governo, mesmo que daqui a uns tempos venhamos a concluir que todos os envolvidos permanecem nos seus lugares, protegidos seja por uma interpretação da lei, seja por uma lei entretanto revista.
Praticamente o mesmo registo de análise pode ser estendido ao último caso protagonizado pelo atual secretário de Estado Miguel Alves, ex-Presidente da Câmara Municipal da Caminha da minha afeição, integrado no governo para reforçar a sua coordenação política. Por maior legalidade (aguardemos o que dirá o Ministério Público) que possa ser assacada à decisão tomada e validada no Executivo Municipal de contrair um contrato promessa para a futura instalação de um Centro de Congressos ou coisa que o valha, uma vez mais se trata de uma questão de bom senso e razoabilidade. O trajeto político de Miguel Alves é de grande ambição, com pretensões de afirmação inclusivamente a nível regional. Existirem políticos com ambição não é algo à partida reprovável, a política precisa de motivação e muitos políticos vão buscá-la à sua própria ambição. Mas por mais que possa aqui existir alguma fantasia mediática, os contornos do caso, sobretudo a natureza da empresa praticamente unipessoal que está na origem e outorgante do contrato-promessa, são pouco canónicos. Para além de que imaginar a viabilidade de um Centro de Congressos de grandes proporções num concelho como Caminha releva já do campo da mais pura ilusão.
Se acrescentarmos a tudo isto outros casos que vão emergindo no âmbito da grande família socialista (designadamente no mundo das autarquias), como foi o caso recente de Montalegre, temos um desgaste que faz mossa na credibilidade política do governo. Esse desgaste consome energias da governação e do primeiro-Ministro, e António Costa lida mal com este tipo de questões, e pior do que tudo penaliza a focagem da governação não só nos meandros mais profundos da conjuntura inflacionista, mas sobretudo na mitigação talvez do problema central da sociedade portuguesa (ver hoje o artigo de António Barreto no Público). O combate decisivo à pobreza não pode ser obviamente apenas responsabilidade da intervenção do governo. Mas para que uma frente alargada e institucional de cooperação seja possível no combate a esse problema é preciso que o governo seja credível.
Nota final:
A imagem escolhida para abrir este post não tem substancialmente nada que ver com o tema da crónica. Mas é uma oportunidade para recordar um autor de escrita fulgurante, numa vida curta, do qual gosto muito.
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