(Enquanto reflito sobre o clássico de ontem, em que o pragmatismo de um engenheiro mecânico alemão venceu a impetuosidade agressiva de um arrebatado intuitivo, e que bem que soube ao fim de alguns anos vencer a tradição, obrigando-me a consolar a neta dragona, dou de caras com o realismo da crónica de José Pacheco Pereira no Público de hoje, link aqui. A crónica é um verdadeiro manual de chamada à razão dos que, de um lado, continuam a espalhar a ilusão de uma derrota rápida da invasão russa e que, do outro, continuam pela via do apelo à paz a não condenar o despudorado irrealismo de um autocrata. Já há longo tempo que venho fortalecendo a intuição de que caminhamos de escalada em escalada para uma não saída, com a evidência gravosa de que o número de países implicados vai se alargando, numa nuvem tóxica de conflito. O realismo descritivo e analítico de Pacheco Pereira formaliza-me essa intuição e por isso estou agradecido.)
Pouca gente refletiu em profundidade sobre o significado da tosca anexação que Putin realizou de alguns territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia. Por ser tosca, despudoradamente operacionalizada com referendos de trazer por casa, intimidatórios, sem qualquer representatividade, as anexações foram entendidas como algo de espúrio, segundo alguns inclusivamente como um indicador de desespero do agressor. Mas pouca gente prestou atenção ao que as anexações significam de complexidade acrescida de um eventual, e longínquo, processo de negociação. Mesmo que toscas, as anexações são uma jogada que perturba o comportamento próximo dos Ucranianos, que obviamente nunca aceitarão tréguas sem a devolução dos territórios anexados. A ainda não totalmente esclarecedora ofensiva dos Ucranianos em Kherson aí está para o provar. Ou seja, à medida que cada jogada bélica de um lado e do outro se processam mais dependente fica o fim do conflito da vitória e derrota dos contendores, agravamento indefinidamente a probabilidade de um fim negociado.
Estou convencido que se não existisse a ameaça nuclear, e ela é real e não apenas um bluff de alguém acossado, já a NATO interviera no conflito e precipitado a derrota russa. O espectro de sem saída para além do desenvolvimento do próprio processo de guerra no terreno com todo o arsenal de atrocidades e violações dos mais elementares princípios do código de guerra vai-se instalando e cada vez mais a agudização do próprio conflito emerge como a única solução à vista. É verdade que a recuperação ucraniana é notável, mas o desespero da reação russa precipita o conflito para um nível de sofrimento do povo ucraniano. A questão dos drones de origem iraniana ameaça alargar ainda mais o conflito num contexto em que a deriva Republicana nos EUA ameaça colocar a União Europeia num sobre-esforço de ajuda à Ucrânia que não anuncia nada de positivo.
A questão das eleições intercalares nos EUA faz parte deste cenário de sem saída. A questão importante não é que Biden e os Democratas correm o sério risco de verem a sua ação política seriamente penalizada pelo que poderá passar-se em termos de Congresso e Senado. O ponto mais relevante é que uma grande maioria dos representantes Republicanos que se perfilam com vitórias possíveis alinham na negação da vitória eleitoral de Biden. O que significa que o Partido Republicano está definitivamente corroído pela doença do trumpismo e por ela está totalmente manietado.
Todas as variantes credíveis do cenário possível anunciam provavelmente décadas de séria interrupção dos níveis de satisfação a que o modelo social europeu tem proporcionado aos Europeus. Será prudente pensar e conceber a preparação para esse cenário, obviamente com maior relevo para os países que como nós partem de um nível ainda truncado do seu Estado Social, como aliás os números da pobreza (pandemia + inflação) o ilustram e que merecerão nos próximos dias uma reflexão neste espaço.
Quanto mais mergulho nesta cenarização e avanço na leitura do Slouching Utopia (proximamente com análise neste espaço) de Bradford DeLong melhor compreendo que o grande “século” de 1870 a 2010 se arrisca a ser um fenómeno atípico no tempo longo que os acontecimentos e a indeterminação atuais nos anunciam. Por isso, o aviso de Pacheco Pereira merece entrar naquele princípio do “para memória futura”.
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