(Sou um indefetível admirador da prosa de Clara Ferreira Alves e trepo pelas paredes com algum do seu verbo, sobretudo com o catastrofismo frequentemente troglodita dos seus comentários no Eixo do Mal. Como a qualidade da prosa é do melhor que temos, estou disponível para dar de barato e ignorar a fraqueza do verbo. É este o caso da crónica da Pluma Caprichosa do Expresso deste fim de semana, a qual aqui invoco como um instrumento crucial para compreendermos parte das derivas da representação política que nos atormentam.
O tema é bem conhecido. Existe um mar de gente que se perceciona a si própria como não politicamente representada, não apenas porque associa a política à corrupção de algumas das elites, mas também porque não consegue estabelecer um nexo, pequeno que seja, de confiança com a outra parte dessas mesmas elites não identificadas com a corrupção. É esse vazio político, que é difícil de quantificar com algum rigor e que se perceciona com traços imprecisos e manifestações muito impressivas e pontuais, inibindo qualquer generalização que seja séria, que tem emergido como um campo de sedução para as direitas mais radicais. Não está demonstrado que esse vazio esteja estavelmente preenchido, muitas vezes esse preenchimento é muito efémero, não resiste à primeira experiência de governação dessas forças políticas. Mas à medida que cada passo de sedução corre mal, a disposição que acompanha essa não representação torna-se mais violenta e agressiva. Porém, enquanto essas efémeras ocupações desse vazio político se sucedem, a perturbação da vida democrática instala-se. Se não fora por outros motivos, existe um que tem de ser considerado. Cria-se um efeito de contágio nas forças políticas não identificadas com esse radicalismo de direita, que começam a ceder com mais facilidade ao populismo mais rasteiro. Basta, por exemplo, contemplar o cartaz do PSD sobre as pensões em que Luís Montenegro aparece sem pudor como o salvador dos pensionistas, oferecendo-lhes o melhor dos mundos para marcar a diferença com o Governo. Um exemplo cristalino do efeito de contágio a que me referia.
Uma das razões que conduziu a esse vazio político de representação resulta da incapacidade de perceber e sentir os problemas desse universo de pessoas. E não é um problema de inexistência de reflexão ou investigação sociológicas. É mesmo um problema de não empatia com esses problemas e, por inerência, com as pessoas que os vivem no seu dia a dia. É neste último plano que a crónica “Conheço uma Pessoa” de CFA marca a diferença e coloca o problema na sua verdadeira dimensão.
E se muitas vezes aqui vociferei sobre os exageros catastrofistas do comentário de CFA no Eixo do Mal, o melhor que posso fazer é aqui reproduzir um excerto dessa crónica, que é um alerta poderoso, ao qual a política dos não radicais, de esquerda ou de direita, não deve ficar indiferente:
“(…) Os liberais como eu, seguros da convicção democrática e dos ideais internacionalistas e generosos para com a diferença, não conseguiram perceber o passado, ao foi oferecida a incerteza de um futuro impossível de enfrentar. Enquanto navegamos na Amazon, eles arrastam-se ao Minipreço da esquina, que destronou a mercearia e o lugar da conversa humana. A desumanização do presente tecnológico e digital deixou os velhos iletrados e desprovidos para trás. E muitos dos descendentes. Os velhos que têm netos atentos, que não emigraram por sua vez, são mais felizes. Os netos descodificam o presente. Os outros estão por sua conta, Vamos ficando chocados com a falência da democracia liberal, enquanto respiramos dentro da câmara de eco, vemos os mesmos liberais, movemo-nos dentro da bolha das nossas certezas liberais. Temos falta de atenção e temos sempre razão. A esquerda continua amarrada a ideologias do princípio do século XX e nunca percebeu o anacronismo da matriz ou o logaritmo do capitalismo tecnológico. A proletarização da classe média é uma constante deste século e muitos proletários escolherão a direita e a autocracia que lhes promete uma atenção.
Convinha perceber como vivem os outros. Os que não marcham como nós. Os que não votarão como nós.”
Nota final:
Por falar na Amazon, chega-me em princípio à mão amanhã a obra que, em meu entender, marcará a edição económica em 2022, “Slouching Towards Utopia – na Economic History of the Twentieth Century” (Basic Books), de Bradford DeLong. Assinante do substack de Brad, acompanhei ao longo do tempo a génese da obra e tenho seguido o vigoroso debate que ela tem suscitado. O século XX de DeLong é algo que começa em 1870 e acaba em 2010. Estou ansioso por poder mergulhar nas suas páginas e aventurar-me a uma review para este blogue. Espero entretanto que algum editor de boa vontade em Portugal a traduza para português, alargando o leque dos que poderão ter com ela contacto.
Sem comentários:
Enviar um comentário