(Eu sei que a inventiva comunicacional do Daily Star é de muito mau gosto, mas aquilo em que a Britaly, perdão o Reino Unido, e sem ofensa para os italianos que caminham também para o pior, se transformou justifica que a imagem seja dura, sendo cristalina a inevitabilidade da demissão de Liz Truss. Afinal, o mandato para que foi eleita não poderia ser cumprido. A questão inevitável é a de saber se o mandato pelo qual os Conservadores, então liderados por Boris Johnson, se mantém como elemento de fundamentação das cores do Governo. A questão tem razão de ser porque, adicionalmente, se têm acumulado novos elementos sobre a desgraça que o BREXIT tem representado para os britânicos e a evidência é segura de que, por muito animado que se apresente, o Parlamento já não representa por estes dias o sentir da população em geral. Logo uma falha de democracia que os Conservadores tudo indica irão desviar para canto, até porque o soberano Carlos estará já a pensar nos rituais da sua entronização para o próximo mês de maio e terá mais em que pensar do que estar atento a tanta faca e navalha.)
A forte agitação que atravessa o Reino Unido continua a ser uma riquíssima fonte de inspiração para as nossas reflexões quotidianas, envolvendo uma deliciosa diversidade de temas que vão desde novas perspetivas sobre o poder insondável dos mercados à gestão da política macroeconomia, passando pela política, sim, sempre a inevitável e incontornável política.
A forte instabilização que as medidas de Truss e Kwarteng provocaram, não apenas a nível interno, mas também com riscos de extensão de perturbação internacional, surpreendeu muita gente. Afinal, os mercados costumavam ser o inimigo figadal da esquerda que ainda não abdicou de uma utopia política de os contornar. A TINA (There Is No Alternative) tem essa linhagem e muito boa gente lutou para vencer essa tal inevitabilidade. Mas surpreendentemente a força dissuasora dos mercados reemergiu agora dando cabo não de uma política neoliberal consistente com os seus princípios fundadores, mas de uma política tonta e sem fundamento de coerência, é verdade conduzida por um governo de direita, fortemente classista e saudosista.
Poucos economistas apresentaram uma explicação para essa surpresa tão consistente como a reflexão protagonizada pelo macroeconomista de Oxford Simon Wren-Lewis do Simply Macro que regressa por bons motivos ao radar deste espaço. Como Wren-Lewis (link aqui) o assinala há princípios básicos dos quais a política macroeconómica não pode desdenhar: “Estabelecer metas para os défices correntes de médio prazo que sejam sustentados e implementar decisões de cobrança de impostos e de despesa pública credíveis e consistentes com essas metas, é tudo que a política fiscal necessita para manter a confiança do mercado” (link aqui). Liz Truss e o seu primeiro Chancellor falharam redondamente porque aderiram acefalamente ao príncipio fatal da economia zombie – anunciar descidas de impostos sem uma credível reorganização da despesa dá sempre para o torto e a novidade é que isso se tornou agora cristalino que pode acontecer mesmo numa economia então considerada como credível e possuindo moeda própria, respeitada no sistema financeiro internacional, a Britain e não a Britaly.
O encadeamento sinalizado por Wren-Lewis merece toda a nossa atenção. O modo como o corte de impostos foi anunciado, para além de mostrar a natureza de classe dos Conservadores, criou incerteza sobre o comportamento futuro da dimensão despesa da política fiscal. Imediatamente essa incerteza afetou o rumo das taxas de juro de curto prazo no Reino Unido, propagando-se aos títulos das obrigações do Tesouro, as conhecidas gilts, e finalmente atirou a libra para valores impensáveis de relação com o dólar, ainda por cima em tempos de fortalecimento deste último.
Alguns palradores de serviço vieram imediatamente papaguear que, afinal, a austeridade era uma boa coisa e que Truss demagogicamente a ignorou. O que é um erro de palmatória. Afinal, quando um bom grupo de economistas se atirou à irracionalidade da austeridade no início da década de 2010 era porque a economia global no seu todo precisava na altura de um forte impulso de procura após a mais severa recessão económica que o capitalismo sofrera depois da Grande Depressão. Esse impulso teria de ser na altura essencialmente público, já que empresas e famílias estavam em clara fase de diminuição do seu endividamento (desalavancagem). A União Europeia falhou na altura por razões de ortodoxia ideológica e por falta de solidariedade com os mais atingidos pela crise das dívidas soberanas e isso deixou marcas, ainda hoje visíveis. E, em Portugal, por muito que custe a um PSD renovado e apostado em santificar Passos Coelho, uma certa entourage em torno de Passos (até admito que Passos tenha sido mal orientado) apostou em transformar essa austeridade numa espécie de liquidação dos fatores e condições consideradas por eles inibidora do crescimento económico. Em boa verdade, tudo princípios muito Hayekianos de que não se pode confundir mercados com justiça social e por isso era aquela a oportunidade para aniquilar o que entendiam ser os velhos do Restelo do crescimento económico. Liquidacionismo puro, uma forma de purificação dolorosa das condições do país …
Ora dizer que Liz Truss não compreendeu que o mercado pedia austeridade e que, na sua ausência, o mercado exerceu o seu papel de “Deus vingativo” é uma perfeita tontice. Já sabíamos que a chamada “exuberância irracional” produz efeitos devastadores em mercado, tendendo sobretudo a castigar os que entram tarde nessa exuberância. O que sabemos agora é que os mercados reagem também negativamente à tontice e à falta de consistência nas políticas macroeconómicas. E parece não haver galões que resistam … O ambiente no Reino Unido é verdadeiramente “silly” e acho que está a fazer mal ao ego do Ronaldo que, ao abandonar o banco ao 90º minuto em direção aos balneários, deu uma imagem de completa irresponsabilidade à massa de jovens que ainda tem (por pouco tempo, estimo eu) algum respeito pela sua qualidade de atleta.
A chamada economia zombie sofre um rude abalo com a demissão de Liz Truss e a completa inversão da sua política económica. Mas como zombie que é, a sua capacidade de resistência não é humana. Por isso, haverá sempre um novo papagaio político a anunciar a sua própria mezinha de corte de impostos para o fortalecimento do crescimento económico e que terá os seus ouvintes e seguidores dedicados. Tudo isto se passou numa economia com moeda própria e representativa. Não é difícil imaginar os efeitos da tontice em ambiente de moeda comum e de fragilidade nesse sistema.
Para bom entendedor …
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