segunda-feira, 24 de outubro de 2022

ECOS DA GUERRA COMERCIAL EUA-CHINA

 


(Enquanto assistimos à liturgia da entronização de Xi Jinping na presidência do Partido Comunista Chinês sob o lema da lealdade ao líder, se vai ouvindo o fabuloso podcast do Economist, The Prince, sobre o líder chinês e nos interrogamos sobre o real significado da saída forçada de Hu Jintao, inicialmente sentado à esquerda de Jinping, talvez valha a pena tentar atualizar os contornos da guerra comercial entre os EUA e a China. Esta guerra foi iniciada por Trump e continuada na administração Biden numa cada vez mais crispada situação internacional. O Peterson International Institute of Economics, PIIE, acaba de dedicar uma vasta investigação empírica ao tema procurando quantificar os contornos e os efeitos do conflito, com autoria de Chad Brown. Entretanto, a economia chinesa cresce mas a ritmos ainda bastante inferiores aos objetivos fixados pela burocracia do PC chinês ....)

O universo dos analistas conhecedores da liturgia e da burocracia chinesa tem ocupado a imprensa internacional sobre como devemos interpretar cada pormenor da grande encenação, num modelo de exercício do poder que tem horror à descentralização, entendida como geradora da corrupção e do caos, e pelos vistos também às mulheres, que acabam de ser varridas dos postos chave do poder. O acidente visual da saída de Jintao, cujo período de governação acabara de ser violentamente criticado por Jinping na sua alocução (aquele olhar de Jintao para Jinping é um monumento simbólico), permanece interrogado, sugerindo que tais analistas não sabem o suficiente. Já li de tudo. Entre o extremo de se tratar da descredibilização para o mundo ver de uma gestão caída em desgraça até à necessidade de assegurar uma votação unânime várias hipóteses foram colocadas. A mais surpreendente é a que surgiu em alguns jornais sobre o significado da cor do cabelo das personagens do regime, em que as brancas e o cabelo grisalho reveladas são indicadores de caída em desgraça e de perda de poder. Olhando para o auditório percebe-se que o restaurador OLEX lá do sítio deve vender que se farta …

Mas voltemos à guerra comercial, coisa de não somenos importância para o estado da economia mundial, já de si abalada primeiro pelo surto pandémico, depois pela invasão russa da Ucrânia.

Quando Trump “decretou”a guerra comercial com a China fê-lo com propósitos claros de reforço do seu discurso populista do América sempre primeiro e num contexto em que a imbricação da economia americana com a chinesa era significativa, seja do ponto de vista in (importações chinesas), seja do ponto de vista out (investimento direto estrangeiro americano na China e deslocalização da produção para essas paragens).

A pesquisa de Chad Brown para o PIIE mostra que o belicismo comercial de Trump foi talvez o único ponto de continuidade entre as duas administrações. Biden manteve praticamente todos os direitos aduaneiros lançados por Trump e a situação internacional que sobreveio entretanto (a crise de Taiwan associada à visita de Pelosi e a própria guerra na Ucrânia) acabou por prolongar por vias e argumentos diversos a guerra comercial de Trump.

É neste contexto aparentemente estranho de uma administração democrata acompanhar o belicismo de Trump que a pesquisa do PIIE se interroga sobre os reais efeitos dessa nova abordagem. Estão as duas grandes economias em rota de afastamento total?

As evidências trazidas pela pesquisa fornecem um quadro global de redução da interdependência entre as duas economias, como seria de prever, mas com matizes. Ou seja, o recuo de importância das importações chinesas na economia americana é visível nos números globais, mas em contrapartida emerge um conjunto de importações cujo peso na economia americana se tem acentuado. Emerge assim uma espécie de guerra comercial seletiva, sob uma tendência geral de afastamento entre as duas economias.

Concretizemos.

Do ponto de vista global, quando se compara as importações americanas com origem na China com as que têm origem no resto do mundo, a situação é claramente contrastada. Dificuldade notória das importações provenientes da China atingirem valores anteriores ao início da guerra comercial e valores claramente acima desse nível por parte das importações provenientes do resto do mundo. A China é assim responsável por 18% do total das importações americanas, representando uma descida de quatro pontos percentuais face à situação antes da guerra comercial.

As quedas observadas são seletivas e estão fortemente correlacionadas com a existência ou não de direitos aduaneiros e no caso da sua existência com a sua magnitude. O estudo apresenta evidência de que os produtos não atingidos pela guerra dos direitos aduaneiros cresceram cerca de 50% face ao início das hostilidades comerciais. Foi o caso dos produtos cuja procura aumentou com os confinamentos pandémicos – computadores portáveis, monitores, telefones portáteis, consolas de jogos e brinquedos. Segundo os dados do estudo, 92% das importações de computadores portáteis e de monitores tem origem na China. Essa percentagem desce para 74% nos telemóveis, com o Vietname já a representar 22% dessas importações de telemóveis. O que vem ao encontro da ideia de que o aparente êxito comercial do Vietname está na sua capacidade de se intrometer nesta guerra comercial tirando partido dos obstáculos colocados à China. Para as consolas de jogos a China representa ainda 90% das importações americanas.

Em contrapartida, as importações mais fustigadas com direitos de 25% revelam uma queda considerável, como é o caso do hardware de TIC, os bens de consumo eletrónicos e os semicondutores, onde se têm observado fenómenos intensivos de escassez de oferta, já que a transição da origem chinesa para a de outros países é lenta.

Não é por isso consistente a ideia de que um fosso total e absoluto está a emergir entre a China e os EUA na sequência do belicismo de Trump, continuado por Biden. A guerra comercial foi seletiva e estaremos provavelmente numa longa transição em que novas fontes de importações vão sendo procuradas e estratégias de outros países emergentes vão produzindo efeitos. O que parece evidente é que o apelo populista de Trump ao ressurgimento da velha indústria americana está muito longe de produzir os efeitos anunciados. O que não é surpresa nenhuma. O grau de imbricação de economias e das cadeias de valores atingido no passado não se ultrapassa por decreto ou slogan mais ou menos populista. Estamos por isso no seio de possíveis mudanças no quadro mais global da organização do comércio internacional.

Por estes dias, sobretudo na sequência de algumas publicações da cronista do Financial Times Rana Foroohar, que acaba de publicar o seu HOMECOMING, e muito na senda dos interesses do mundo ocidental apostado em robustecer a sua posição nas cadeias de valor globais, tem-se falado muito na organização do comércio mundial por grandes blocos. A aposta é compreensível mas seria ingénuo pensar que ela vai gerar imediatamente uma adesão por todo o mundo. A força da influência ocidental já não é a de outrora e uma espécie de Consenso de Washington ao contrário seria em meu entender inviável. Muito dificilmente, entendo eu, os países que viram a pobreza descer e as suas classes médias também se fortalecerem por via do seu lugar na globalização aceitarão a inversão das coisas. A hipótese de um modelo de globalização truncada com parte do mundo ocidental afastado da sua dinâmica parece-me muito arriscada e acho que Branko Milanovic tem razão quando associa esse modelo a um desajeitado e não consensual regresso ao mercantilismo (por blocos é certo, mas mesmo assim mercantilismo). O fortalecimento da União Europeia nas cadeias de valor globais para aumentar a sua resiliência nas crises do tipo da que vivemos por estes dias parece um objetivo compreensível, mas a sua transição para um mundo de fragmentação da economia global seria bastante penosa e penalizando sobretudo economias pequenas e muito abertas como a nossa. Mas isso não significa de todo que essa tentação não possa pairar por aí.

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário