domingo, 16 de outubro de 2022

RACIOCÍNIO ABDUTIVO

 


(Há períodos em que a densidade e o ritmo de trabalho profissional são de tal maneira intensos que a reflexão possível para o blogue se torna praticamente impossível, visível sobretudo face à regularidade com que regra geral ela é publicada. Assim tem acontecido nos últimos dias, o que me obriga a recentrar a reflexão em temas mais próximos da interface entre aquilo em que trabalho todos os dias e os domínios de reflexão mais ampla que trago normalmente para este espaço. É o caso dos processos de raciocínio que os consultores utilizam para ser competentes no que fazem, um assunto apaixonante a que nos últimos dias regressei no quadro da reflexão sobre competências coletivas da organização em que trabalho. Esse será o tema de hoje.)

 

Em 1994, foi publicada uma obra que exerceu uma influência marcante e decisiva nos teóricos e nos “practitioners” do planeamento estratégico, grupo último este em que me integro e em torno de cuja prática tenho desenvolvido uma atividade de “reflective” ou “reflexive” practitioner”. Ou seja, alguém que reflete em torno da sua própria profissional, não hesitando em formalizar experiência e acrescentando-lhe a generalização possível. A obra era assinada por um dos autores mais conhecidos do planeamento estratégico empresarial, Henry Mintzberg e chamava-se “The Rise and the Fall of Strategic Planning” (A ascensão e a queda do Planeamento Estratégico”, Prentice Hall).

Num país como o nosso, em que as ciências da organização estão claramente subalternizadas face ao chamado “management” (gestão) mais ou menos sofisticado, não me espantou que a obra fosse pouco e mal discutida publicamente. Afinal, o pensamento de Mintzberg era claramente incómodo para a consultadoria empresarial predominante e que ocupava o mercado dos serviços de gestão estratégica às empresas. Do ponto de vista que me interessava, o planeamento estratégico organizacional e territorial, por maioria de razão o impacto da obra foi muito diferido no tempo. Pela minha parte, o Rise and Fall e o pensamento de Mintzberg calaram fundo na minha aprendizagem e passaram a ser uma referência permanente para a tal atividade de “reflective practitioner” de que falava há pouco.

 

A pergunta óbvia é a que consiste em saber onde estava o incómodo da abordagem de Mintzberg?

O que Mintzberg nos veio mostrar, em modo bastante out of the box, foi a contundente desmontagem de que a estratégia de uma empresa, de uma organização ou de um território (a obra foca-se no planeamento estratégico empresarial) seja necessariamente algo de muito formalizado ou rígido e que resulte necessária e inevitavelmente de uma sequência linear análise seguida de síntese. O que Mintzberg nos anuncia é que a relação entre análise e síntese é muito mais rica do que uma mera sequência linear em que a primeira parece determinar a segunda. Para isso, recorre ao modo de raciocínio de cada um em que combinamos permanentemente elementos analíticos e sintéticos (estes mais intuitivos e de formação muito mais instantânea, mobilizando até para isso diferentes locais do nosso cérebro.

Assim sendo, a formação de uma estratégia pode assumir modalidades de constituição de padrões de decisão que podem dispensar formalizações muito sofisticadas ou determinadas e, para além disso, resultará de combinatórias de raciocínios mais analíticos e de decisões intuitivas e sintéticas. A questão de saber se essa combinatória é realizada por cada um (mais analítico ou mais intuitivo) ou se tal tarefa cabe à organização de uma equipa ou de uma empresa/organização (combinando gente mais analítica e gente mais sintética e intuitiva) é uma matéria apaixonante. Pude testar na minha prática mais longa que as melhores equipas de planeamento estratégico são as que combinam gente mais analítica e gente mais intuitiva, isto não significando que cada consultor não tenha ele próprio de ensaiar o melhor possível a mobilização do seu próprio cérebro e modo de conceber raciocínios.

Pouco depois da obra de Mintzberg ter provocado a discussão sobre o conteúdo do planeamento estratégico, António Damásio e a sua mulher Hanna Damásio, começaram a publicar a sua valiosa pesquisa em que razão e emoção passavam por uma relação de influência da segunda na primeira com elementos também fundamentais para compreender o processo de decisão individual. Elementos que se inserem na desmontagem da linearidade análise-síntese.

Esta longa introdução serve para trazer à reflexão a relevância central dos modos de raciocínio em todos os processos que visam fundamentar e apoiar a decisão, designadamente a decisão pública, política por conseguinte. Esclareço que a abordagem, digamos teoria do planeamento, que sempre me cativou foi a de se tratar de uma prática profissional destinada efetivamente a qualificar a decisão pública.

 


Em 2011, John Friedmann (Insurgence -Essays in Planning Theory – Routledge), defendia com unhas e dentes a urgente necessidade de não abandonar a ideia de planeamento:

·      “(…) o planeamento trata de importantes matérias públicas;

·      É orientado para obter resultados no “mundo real” cuja concretização exige estratégias políticas;

·      é transativo, comunicativo, colaborativo;

·      procura equilíbrios dinâmicos entre a aprte e o todo, o técnico e o normativo, o empírico e o teórico, o pragmático e o utópico, o próximo presente e o futuro distante, troca valores e mobiliza valores;

·      permite-nos ser visionários com ênfase em valores que incluem a justiça, a sustentabilidade ecológica, o empoderamento cívico, a solidariedade social e o florescimento humano;

·      é transdisciplinar e pode ser operativo em múltiplas escalas, desde as vizinhanças locais até aos espaços globais e transnacionais e até às forças políticas que pode gerar; e finalmente

·      está comprometido com a contínua aprendizagem social” (página 11).

Obviamente, que para modo de entendimento do planeamento os modos de raciocínio que utilizamos no trabalho profissional são diversos e essa diversidade é ela própria crucial na prática profissional.

O modo de raciocínio abdutivo é um desses modos, com o qual adquirimos com o tempo a competência necessária, para combinar intuições e elementos de natureza objetiva e rigorosa no desenho de uma situação, tal qual investigador policial que com base em alguns elementos de investigação consegue deduzir uma abordagem ao crime que depois de clarificada é completada com informação complementar para verificar com evidência segura a intuição inicialmente mobilizada.

Talvez volte ao tema em próximas reflexões, até porque existem outros modos de raciocínio, tal como o raciocinar por antecipação de situações, que fazem parte da caixa de ferramentas de modos de pensar que um profissional competente mobiliza para abordar a incerteza e a indeterminação.

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