terça-feira, 18 de outubro de 2022

SOBRE A DIFÍCIL RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA MONETÁRIA E A POLÍTICA FISCAL

 



(Nos manuais de macroeconomia fala-se correntemente de mix ou combinação de políticas monetárias e políticas fiscais, mas muito raramente aí se aprofundam as condições concretas em que essa relação é estabelecida. O tempo que já temos do novo milénio trouxe-nos evidências ricas e variadas sobre a complexidade dessa relação ou convivência, com sucessão de períodos em que uma das políticas parece tomar a dianteira, para depois se inverter a situação. No tempo em que estamos mergulhados, com inflação ainda longe de estar dominada, perspetivas de deflação a nível global cuja penosidade ainda não sabemos quantificar e indeterminação instalada com origem em diferentes causas, abre-se uma nova oportunidade para reequacionar de novo o diálogo ou combinação entre as duas políticas macroeconómicas, a monetária e a fiscal.)

Vale a pena começar com um sobrevoo rápido sobre a oscilação observada nos tempos mais recentes em matéria de predomínio de cada uma destas políticas. Para compreender esse sobrevoo não podemos esquecer que a política monetária é essencialmente exercida pelos Bancos Centrais, cuja ação restritiva ou expansionista se prolonga depois pela atividade concreta dos bancos, enquadrados pela atividade do regulador. E que a política fiscal é essencialmente produto da ação dos governos, manejando o orçamento anual e as políticas que determinam a formação das receitas e despesas. Uma outra recordatória importante respeita às missões estatutárias dos Bancos Centrais, que podem ser diversas, limitadas ao controlo da estabilidade dos preços (caso do BCE) ou envolvendo também a consideração de outros objetivos, como o emprego/desemprego e o crescimento económico.

Carregando na simplificação dos processos de periodização, pode dizer-se que, até à Grande Recessão de 2008, induzida inicialmente pela crise do subprime nos EUA, a política monetária dominava o ambiente, convicta de que tinha sido possível vencer a questão das perturbações associadas ao ciclo económico. A política fiscal, mais identificada com o keynesianismo, vivia subalternizada. Estávamos nos pretensos tempos da moderação e da estabilidade macroeconómica (essencialmente monetária) e a regra da estabilização dos preços em torno da meta dos 2% que os Bancos Centrais seguiam religiosamente parecia fazer ascender a política monetária a uma competência inatacável.

A Grande Recessão de 2008 e a longa e lenta recuperação, mais ou menos agónica, que se lhe seguiu vieram baralhar as contas. O ambiente de taxas de juro nulas ou negativas que se foi estabelecendo foi progressivamente reduzindo o campo de intervenção da política monetária. E o que é relevante reconhecer é que essa redução do campo de intervenção monetária aconteceu depois de terem sido utilizados os instrumentos mais heterodoxos de política monetária que alguma vez foram praticados pelos bancos centrais. Intervenções como compras massivas de títulos que “incharam” os balanços dos bancos centrais (o célebre “quantitative easing”) e decisões determinadas dos reguladores (faz hoje parte dos manuais a célebre expressão de Draghi então à frente do BCE de que “farei tudo o que for necessário”) foram colocando em evidência a redução do campo de intervenção da política monetária. Expressões bélicas como a da bazuca completaram o quadro. Como é compreensível, quanto mais negativas forem as taxas de juro mais improvável é que a política monetária produza efeitos. Foi o tempo concomitante da redescoberta da política fiscal e muito boa gente lá teve de confrontar-se de novo, lendo, com a sabedoria de Keynes, afinal regressado das origens mais profundas.

Os tempos de pandemia e as necessidades que determinaram em matéria de gestão macroeconómica para simultaneamente conter os danos de perda de crescimento e assistir os que foram mais penalizados pela musculada intervenção do confinamento representaram tempos florescentes para a continuidade da relevância da política fiscal. A gestão pandémica foi em meu entender um período de grande aproximação das duas políticas macroeconómicas. Dois amigos que se reencontraram e que compreenderam que a situação exige convergência de ação e nunca a subalternização do outro.

Para nossa desgraça e perturbação da economia mundial e quando a luz da desaceleração do fenómeno viral emergia, levamos em cima com uma guerra irracional e com o desplante de um autocrata. E a inflação reapareceu, com origens múltiplas, de disrupção da oferta provocada pela guerra em continuidade com a logística recessiva dos confinamentos e de geração a partir da procura, com um potencial e um desejo de consumo que encontrou restrições fortíssimas de oferta. Formou-se, por isso, a tempestade perfeita para a política monetária regressar como instrumento dominante de gestão macroeconómica. As políticas restritivas de subida de taxas de juro para controlar a inflação regressaram à decisão dos Comités dos Bancos Centrais. E o que é curioso é que essa emergência se concretizou não sem hesitações. Seja pelas interrogações sobre a natureza temporária ou estrutural da inflação (interrogações que rapidamente desapareceram com o afastamento da ideia de inflação temporária), seja por reflexos condicionados provocados pelo esgotamento do poder de fogo de meados da década de 2010, um pouco estranhamente a política monetária não abriu fogo imediatamente. Mas o que para alguns analistas mais severos se processou “tarde e a más horas”, a política monetária restritiva reapareceu com o objetivo de tentar colocar os preços de novo no raio de ação dos 2% como farol.

A pergunta óbvia consiste em saber se assistiremos a um novo ciclo de subalternização da política fiscal. Para já tenho a intuição de que o pensamento diretor da política monetária está menos ideológico e provavelmente o contexto mundial em que tudo isto acontece não conduzirá ao desaparecimento de novo para parte incerta da política fiscal. Estamos perante uma atividade generalizada dos Bancos Centrais de todo o mundo apostados na subida das taxas de juro de referência para controlar a inflação. Mas uma grande parte desses Bancos Centrais tem às costas um problema não menos grave – a fortaleza do dólar e a desvalorização das suas moedas, que é uma passadeira vermelha para a inflação importada (as importações ficam mais caras). Por isso, estamos perante um caminho provável de recessão (deflação) global. A política restritiva da subida das taxas de juro para controlar sustentadamente a inflação em ambiente tão adverso pode gerar níveis de recessão de atividade económica superiores aos que seriam necessários acaso houvesse uma coordenação mais eficaz das políticas macroeconómicas por todo o mundo. Mas a guerra da Ucrânia envenenou o ambiente e estamos num clima pouco propício à cooperação macroeconómica. Países fundamentais como a China e a Índia, por exemplo, pelo seu posicionamento face ao desplante de Putin e por argumentos insondáveis de geoestratégia, estão claramente fora dessa coordenação. Países como o Vietname que têm escapado sabiamente (o que sabem estes Vietnamitas) às escaramuças diplomáticas emerge, sem surpresa, como a economia de maior crescimento por aquelas paragens. Uma boa lição macroeconómica.

Nos meandros da blogosfera e da Twittoesfera económica, dei com um interessante documento elaborado pelo Committee for a Responsible Federal Budget (sim os Americanos têm destas coisas), datado de 13 de outubro, por conseguinte fresquinho, que tem o interessante título de “Fiscal Policy in a Time of High Inflation” (Política Fiscal em Tempos de Inflação Elevada) (link aqui). Como é óbvio, esta origem obriga-nos sempre a descontextualizar para depois recontextualizar ao problema da Europa. Mas trata-se de um documento de grande equilíbrio e sensatez que parece enveredar por um caminho que corresponde à minha intuição de que desta vez a política fiscal não desaparecerá para parte incerta. Não ignorando que o poder de fogo da política monetária para controlar a inflação é mais forte, o que o documento nos traz é a atribuição à política fiscal de um papel importante que se distribui por três missões: (i) reduzir as pressões recessivas provocadas pela política restritiva de subida das taxas de juro e estimular o crescimento económico; (ii) diversificar e limitar o sofrimento económico gerado por essas medidas restritivas; (iii) reduzir o custo orçamental do combate à inflação.

Como é óbvio, a operacionalização desta missão da política fiscal por estes tempos não é automática e vai requerer políticas governamentais sábias e muito bem calibradas, não esquecendo que só o aliviamento do choque energético para as famílias e para as empresas implicará por si só um naco importante dos orçamentos públicos. Uma coisa sabemos: não será com modelos levianos próprios da Trussmania (ver post anterior) que a política fiscal poderá levar a referida missão a bom porto.

Nota final:


A crueldade dos tabloides britânicos é de pasmar. O Daily Star acaba de criar uma situação live em que se compara o tempo que demorará uma couve repolho a degradar-se com a erosão de Liz Truss. E ainda dizem que a ambiência britânica não é divertida.

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