(O tema da desigualdade é um domínio recorrente de reflexão neste blogue. Assim acontece porque é um tema central do nosso tempo, porque polariza o pensamento e a ação políticos e essencialmente porque diferencia num contexto em que as ideologias e os valores parecem ter fugido para parte incerta. Nos últimos tempos, com informação cada vez mais robusta e maior cobertura mundial, têm emergido novos ângulos de reflexão, particularmente quando confrontamos a evolução da desigualdade país a país, com relevo para as economias avançadas do Ocidente, com a evolução da desigualdade a nível mundial, a que é estudada com cada indivíduo e o seu respetivo rendimento a serem considerados independentemente do país a que pertencem. Há hoje um grupo de economistas de grande robustez teórica e empírica a ocupar-se deste assunto, com grande parte desse trabalho a ser vertido para o World Inequality Report, veja-se a sua edição de 2022. Como sabem, para além desse referencial de conforto, sigo de perto a reflexão de Branko Milanovic, um dos pioneiros na matéria, ainda nos seus tempos de economista do Banco Mundial).
O que é interessante nos últimos tempos é o que resulta do confronto acima mencionado, entre a desigualdade por país e a desigualdade considerada a nível mundial, depois de à paridade dos poderes de compra ser possível a comparação de rendimentos.
No plano da desigualdade por país, já por repetidas vezes neste blogue foi sublinhada a deriva inequalitária pela qual praticamente todas as economias avançadas do Ocidente estão a passar. O fenómeno tem uma explicação multi-argumento, alguns dos quais são muito conhecidos. Assim, apesar do progresso técnico se apresentar relativamente anémico em termos de produtividade aparente do trabalho (por hora trabalhada ou por posto de trabalho), ainda assim a evolução da produtividade tem andado francamente acima da evolução salarial. Este facto é particularmente evidente na economia americana. A um segundo nível, o processo de concentração empresarial em curso tende a reforçar as condições de monopólio na procura de trabalho, influenciando o rebaixamento de salários. Um terceiro nível aponta para a tentação das economias zombie, descida de impostos para os mais ricos, e com isso agravamento óbvio da desigualdade. Um quarto nível é a quebra pronunciada dos níveis de sindicalização, fragilizando as forças de proteção do salário. E se fossem precisas mais condições favoráveis à desigualdade o regresso da inflação vem regra geral acompanhado da degradação da repartição entre lucros e salários, com os primeiros a repercutir mais facilmente as tendências inflacionistas. As consequências desta deriva são devastadoras no plano político, criando uma multidão de deserdados que têm vindo a baralhar os padrões eleitorais de vários países, presas fáceis de diferentes cantos de sereia, maquiavelicamente orquestrados a partir das redes sociais.
Mas o que é curioso, e até de certo modo intrigante, é este agravamento da desigualdade por país coexistir com uma profunda mudança de tendências na distribuição do rendimento à escala mundial. Convém não esquecer que em matéria de desigualdade mundial o declínio demográfico do ocidente se confronta com a ainda viva dinâmica demográfica de outros continentes, como por exemplo a Ásia. A taxa de fertilidade tem descido por todo o mundo em que o desenvolvimento económico não é uma miragem. Mas ainda assim, como essa descida se processa em massas demográficas muito elevadas, o crescimento demográfico coexiste durante largo tempo com a descida da taxa de fertilidade.
O gráfico acima reproduzido ilustra que as curvas da distribuição do rendimento a nível mundial construídas para três diferentes momentos nesse período de 30 anos se alteraram rapidamente abandonando o perfil da chamada “curva elefante” para se transformarem em curvas em U ou sob a forma de sino. A evolução temporal destas curvas mostra que uma “classe média” mundial (por mais imperfeita que seja a classificação em termos de grupos de rendimento) tem vindo a emergir. Sabemos que ela não reside fundamentalmente no Ocidente, mas lá para as bandas da Ásia e do Pacífico.
Mas o mais curioso é a revelação de que, apesar de todas as atrocidades atribuídas à globalização e de todos os juízos críticos e desejos de reforma do sistema, o crescimento económico mundial tem sido “pró-pobres”. Ou seja, segundo os dados da distribuição mundial do rendimento, os grupos estatísticos com rendimentos mais baixos têm visto o seu rendimento aumentar percentualmente mais do que os mais ricos. Por esta evidência, compreende-se também a relevância que a globalização tem assumido na redução da pobreza absoluta a nível mundial. Bem sei que temos sempre que agilizar o cálculo de indicadores com ou sem a China, mas as evidências continuam válidas mesmo expurgando os dados do enviesamento demográfico chinês.
Claro que existem por vezes problemas no cálculo e utilização de paridades de poder de compra entre economias com padrões culturais de consumo muito diferentes, mas são os dados que temos e a progressão dos métodos de cálculo e de montagem dos cabazes tem sido notável.
O que nos pode levar a uma pergunta inocente mas ao mesmo tempo sugestiva. Muito recentemente, entre os detratores da globalização há mudanças no sistema de atores. Para lá dos grupos que animavam as conhecidas e violentas manifestações anti-globalização, hoje, sobretudo entre os Republicanos americanos e outra gente afluente da Europa, têm prosperado os chamados detratores ricos da globalização, a coberto de um nacionalismo económico de cariz populista. A pergunta inevitável é esta: terá esta mudança nos protagonistas da crítica feroz à globalização algo que ver com a surpreendente característica do crescimento económico mundial dos últimos 30 anos ter sido “pró-pobres”?
Perguntar não ofende e isto não significa de todo que o crescimento mundial não possa ainda reforçar essa característica …
Sem comentários:
Enviar um comentário