(Aquilo que alguns analistas receavam, o prolongamento por mais um mês da tensão eleitoral mais ou menos violenta e radicalizada, confirmou-se. As sondagens disponíveis terão sobreavaliado o capital eleitoral de Lula e do PT e Bolsonaro parte para a segunda volta com margem de manobra para a toda a série de tropelias amenizadoras da sua incompetência. Nada que um especialista de sondagens como Pedro Magalhães não consiga explicar, com um arsenal de fatores como a fuga do voto silencioso das sondagens, o enviesamento de amostras ou mesmo a deliberada viciação de respostas. Assistiremos seguramente a um dos meses mais tenebrosos do vale tudo na política brasileira, o que os referidos analistas desejariam evitar, estando Lula e o PT colocados perante o desafio das suas vidas, por mais complicadas que elas tenham sido nos últimos tempos. Há quem não retire o dedo da tecla da corrupção e da imagem que em torno dela se abateu sobre Lula e o PT, mas o meu foco está noutras interpretações. Avaliem por favor a sua consistência.
Se havia dúvidas de interpretação dos rumos pelos quais a sociedade brasileira está encaminhada, os resultados desta primeira volta dissiparam-nos totalmente. Uma sociedade politicamente fraturada, polarizada em dois grandes blocos, confronta-se com os projetos políticos mais apetrechados para os representar.
De um lado, os que consideram que a sociedade brasileira está endemicamente roída pela desigualdade profunda e crescente, seriamente agravada pela imbecilidade da abordagem COVID 19 de Bolsonaro e pela cedência despudorada aos interesses empresariais que estão por detrás de uma das maiores catástrofes ambientais do planeta, a desflorestação agressiva e descontrolada da Amazónia. E que por isso exige que a mitigação da desigualdade constitua uma condição necessária de qualquer processo de reconciliação nacional, matéria que só Lula parece em condições de operar, sobretudo se pensarmos nos primeiros anos da sua experiência como Presidente.
Do outro lado, os que são sensíveis aos valores mais tradicionais do Deus, Pátria, Família (por estas inclinações Salazar ainda se arrisca a ser um estadista religiosamente invocado) e que não estão dispostos a ceder nos seus privilégios de classe e de localização no topo superior da distribuição do rendimento. O bloco dos que não amam necessariamente a violência mas que estão sempre dispostos a relativizar a musculação do poder para assegurar a reprodução do seu próprio poder e superioridade. E no seio desse bloco estarão seguramente também os mais diretamente interessados na desflorestação descontrolada da Amazónia, apesar de Bolsonaro ter timidamente uma ou duas vezes invocado a falta de solidariedade do mundo para o Brasil poder conter esse processo. Os empresários mais diretamente ligados aos interesses da madeira e à transformação das florestas em solo para a loucura do agroalimentar obviamente que estão nesse bloco, gozando de alguma impunidade enquanto podem.
Por vício de entendimento e por acreditar no poder transformador da desigualdade, muitos de nós tendem a acreditar que uma polarização deste tipo pode ser superada pelo alargamento da frente dos que são mais diretamente penalizados por essa desigualdade, desde que surja uma liderança política com potencial de representação desses deserdados da fortuna e de uma progressão para vida decente. Por isso, muito boa gente, na qual me incluo, por vezes não compreende o Brasil político. Como é possível que uma desigualdade daquela magnitude e a generalização do empobrecimento e da fome não sustentem uma maioria política, ainda para mais, como já referi, positivamente testada pelos primeiros anos da passagem de Lula pelo poder?
Isso acontece porque tendemos a desvalorizar o poder dos melhor situados na escala da distribuição do rendimento na defesa das suas posições e na perpetuação dessa desigualdade. Mas acontece também que na sociedade brasileira podem atuar outros fenómenos que podem reduzir o poder de influência política dos deserdados do desenvolvimento. A influência das igrejas evangélicas não pode ser menosprezada pelo poder que manifestam de integração dos mais desfavorecidos. Certamente que nem todos os agrupamentos evangélicos estarão do lado da perpetuação dos desequilíbrios sociais, mas as pesquisas mais conhecidas reconhecem a sua influência na alimentação do apoio a Bolsonaro.
Tudo indica que o próximo mês vai representar uma espécie de vale tudo na política brasileira, mundo em que o Bolsonaro e os seus apoiantes estarão como peixe na água, alimentados pela poderosa máquina das redes sociais. Ou seja, se a primeira volta marcou indiscutivelmente a agudização da polarização, já tenho dificuldade em designar a escalada dessa polarização que se adivinha, com a interrogação da posição que as forças de segurança vão assumir.
Cada vez mais se me enraíza a ideia de que talvez compreenda e admire a literatura e a música brasileiras, mas daí a compreender o Brasil político e a sociedade brasileira vai uma grande distância. Talvez por isso tenha sido temerária esta minha tentativa de racionalização de ideias após o primeiro embate eleitoral. Avaliem.
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