(O mundo económico respira um pouco com a chegada a Chancellor do Tesouro britânico de Jeremy Hunt como exemplo de um Ministro das Finanças lá do sítio com algum equilíbrio na cabeça. É verdade que o Chancellor Lucky Luke Kwasi Kwarteng, que deveria ter ficado como Quasi-Chancellor e não como Ministro efetivo, acabou por ser um bode expiatório conveniente para o arrojo inconsequente de Liz Truss, tentando salvar o couro da primeira-Ministra. De facto, ninguém de bom juízo imaginará que a trapalhada económica dos Conservadores foi obra apenas do agora remetido para a insignificância Kwarteng. Tamanho foi o impacto internacional da entrada de leão e saída de sendeiro do mais ambicioso programa de cortes fiscais que vale a pena estudá-lo do ponto de vista das lições de experiência que ele nos traz. Lições de experiência que não adiantarão de nada para os economistas que teimem em permanecer no mundo da economia zombie, mas que serão fundamentais para os economistas minimamente equilibrados e que queiram decidir com os pezinhos bem plantados na terra.)
A grande vantagem destas lições é que a sua elaboração pôde contar com gente muito qualificada e que não deixa de ser ouvida pelos mercados mesmo quando entende que os caminhos da heterodoxia são para trilhar com segurança e não ao jeito de experimentadores levianos da macroeconomia sem a preocupação de acautelar os interesses dos que mais sofrem com essa leviandade.
E por mais que os críticos do governo de António Costa se
esforcem desesperadamente por encontrar similaridades entre a austeridade dos
temos da Troika e os atuais, o que devemos procurar é identificar a particularidade
extrema do contexto macroglobal atual. Para isso, temos o contributo de um
homem que pensa muito bem, Martin Wolf, e que foi capaz de evoluir de uma
defesa incondicional da globalização para posições bem mais sensatas e
fundamentadas sobre os desafios da gestão macroeconómica nos tempos de hoje. Ninguém
melhor do que ele para caracterizar o ambiente explosivo em que estamos mergulhados:
“É uma conjuntura crítica para a economia
mundial, com o legado do COVID, guerra na Ucrânia, inflação elevada
(especialmente altas de preços de bens alimentares e da energia), aperto da
política monetária e dólar forte. Este foi o contexto do último mês em que
Kwasi Kwarteng, chancellor do Tesouro no novo governo de Liz Truss tornou
público o seu mini-orçamento”(link aqui).
Mas vejamos então quais podem ser as principais lições a retirar da experiência, melhor dizendo da má e disparatada Truss mania.
Lição nº 1
Os fanáticos aficionados dos cortes de impostos para os mais ricos sem corte seletivo de despesa como receita mágica para o crescimento económico, além de não disporem de fundamentação económica sólida para a decisão, ignoraram que tal decisão concretizada num contexto particular como o descrito pela síntese de Martin Wolf tende a provocar efeitos devastadores.
Assim aconteceu. O sagaz e matreiro Lawrence Summers descreveu melhor do que ninguém a tempestade perfeita criada (link aqui): “Penso que há aqui elementos de uma tempestade perfeita. Temos uma política fiscal errada combinada com falta de credibilidade do banco central por sua vez combinada com alavancagem tóxica criando efeitos de retorno ou feed -back que geram cumulativamente um resultado desastroso.” Bastaria a magnitude dos apoios para contrariar a subida dos preços de energia para amarrar o governo britânico a uma rigorosa disciplina fiscal sem corte de impostos. Ao enveredar pela sedução ideológica de um corte de impostos sem mexer na despesa e nos seus compromissos, a Trussmania introduziu mais um fator de instabilidade mundial. Apetece dizer, brinquem nos gabinetes ao corte de impostos ou nos artigos apaixonados mas não ousem passar daí. E dá para rir abundantemente os exercícios empolgados dos nossos comentadores amantes do choque fiscal para os mais ricos criticando a leviandade de Truss e Kwarteng. Poderá o equilíbrio do novo Chancellor apagar o incêndio? Terá o Banco de Inglaterra se precipitado na delimitação temporal do seu “farei o que for necessário” para conter a situação?
Lição nº 2
Neste contexto mundial tão particular, a volatilidade dos mercados pode destruir num ápice a credibilidade de uma moeda como a libra e de um Banco Central como o de Inglaterra, transformando moeda e país num estatuto de país e moeda emergente de duvidosa credibilidade. Tudo isto, repito, num ápice e num contexto de fortíssima imprevisibilidade: quem diria que seriam os mercados e não a oposição política a cilindrar a teimosia de Truss e do seu Chancellor?
Por todas estas razões, começo a ser mais tolerante para com o conservadorismo fiscal de Medina. Isso não significa pactuar com aldrabices e chico-espertices como, por exemplo, a do estudo que não era estudo sobre os riscos da sustentabilidade da segurança social. Isso não significa também deixar de discutir o ritmo como o Governo se propõe baixar o peso da dívida pública no PIB, que alguns acham ser demasiado rápido e intenso para o contexto que vivemos, como o faz Ricardo Cabral no Público (link aqui).
Lição nº 3
A tempestade perfeita que a Trussmania suscitou mostra ainda que os mercados financeiros traiçoeiros e coveiros do sistema em 2008 estão longe de poder ser considerados como estando expurgados dos mais profundos fatores de instabilidade. Parece que assistimos a mudanças retóricas, que estão longe de poder ser consideradas efetivas. Afinal, a economia mundial, mesmo que ameaçada por disrupções sérias, continua com um processo de globalização sem governação. No meio do que o economista americano Adam Tooze designa apropriadamente de “poli-crise”, com todas as desgraças do mundo a produzir-se em simultâneo, nunca a coordenação de políticas macroeconómicas a nível mundial foi tão necessária. Para além disso, deixar a China longe desse esforço poderá custar-nos caro. Bem sei que o realismo político nem sempre se recomenda, mas neste contexto deixar a China de fora da estabilização mundial constituirá um enorme risco.
Correções de gralhas em 18.10.2022
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