(A edição de 15 de junho da revista The Economist dedica-lhe capa e um importante artigo na secção de ciência e tecnologia, facto que não passou despercebido ao meu colega de blogue. E quando o que se publica de bom é para todos, também o blogue de Noah Smith compreensivelmente se interessou pelo assunto. Mas de que assunto se trata afinal? Tendemos a olhar para a economia chinesa como um caso de estudo de mudança estrutural em matéria de industrialização extrovertida e com um modelo agressivo de condução pública do mercado. Mas parece inquestionável que temos dedicado muito pouca atenção à dimensão da incorporação de conhecimento no modelo de crescimento chinês. Quem nos últimos tempos se interessou pela intensidade em conhecimento incorporada no modelo económico chinês? Muito pouca gente e isso, provavelmente, é fruto daquela ideia central de ver a divisão internacional do trabalho pelos olhos das economias maduras ocidentais. Por outras palavras, a divisão internacional do trabalho vai se transformando, mas a perspetiva ocidental sempre acreditou que conseguiria manter o domínio da incorporação do conhecimento. Talvez seja altura de mudar de lentes. Por que razão o ocidente tenderá a manter a superioridade na produção de conhecimento e na intensidade da sua incorporação na produção e, consequentemente, nas exportações? Será que essa convicção reside ela própria em ciência segura, neste caso em matéria de economia da ciência e tecnologia e da inovação em geral? O meu ponto vai no sentido de que essa convicção pode estar a ser abalada. E haverá, em meu entender, razões plausíveis para admitir essa possibilidade, não fruto de conjeturas inventivas, mas antes pelo contrário se seguirmos os ensinamentos da economia da inovação, lendo bem o que economistas como Paul Romer e outros nos transmitiram. Esse é o meu ponto e corrobora tudo o que a Economist nos relembrou este fim de semana.)
Sem entrar em grandes deambulações pela sofisticação dos modelos que explicam os determinantes da investigação científica e tecnológica, ou seja, optando por uma formulação simples mas compreensiva, poderemos dizer que o ritmo de produção de investigação científica e tecnológica como veículo de geração de inovação depende essencialmente de três fatores: (i) o número de investigadores equivalentes a tempo integral que consigamos colocar em atividades de I&D; (ii) a produtividade com que esses investigadores trabalham, isto é que montantes de ideias eles conseguem produzir por investigador/ano e (iii) fatores de organização e eficiência do sistema de investigação que se prendem essencialmente com o modo como a investigação surge relacionada com a atividade económica e que podem envolver questões como a existência de grandes empresas e sociedades com departamentos internos de I&D ou como a existência de instituições especializadas na transferência de conhecimento e na valorização da interação entre a I&D e a atividade empresarial.
Destes fatores, sabemos que o segundo fator tem revelado uma apreciável queda de produtividade, como se a produção de novas ideias se estivesse a revelar cada vez mais difícil, sendo necessários cada vez mais investigadores para gerar uma ideia relevante. Do terceiro fator, sabemos que até há bem pouco tempo o modelo americano se destacava como o veiculador do ambiente institucional mais propício à investigação, mas essa questão tem vindo a ficar cada vez mais matizada, com outros países de fronteira tecnológica a oferecer um campo interessante de boas práticas, como a Suécia e a Coreia do Sul por exemplo. NO que respeita ao primeiro fator, tudo radica na massa de investigadores que setor público e empresas conseguem alocar às atividades de investigação.
Por isso, tendo em conta que o segundo e o terceiro fator podem revelar uma tendência para o nivelamento, há quem refira que o fator crucial constitui o elemento determinante para explicar os diferentes desempenhos dos sistemas de investigação. Ora, em última instância, o número de investigadores a alocar às atividades de investigação depende em última instância de um fator demográfico. O meu exemplo de estimação é o seguinte: 1% de investigadores na China terá sempre um impacto na investigação superior ao de 1% de investigadores em Portugal, por razões óbvias, já que o 1º de engenheiros chineses representará uma massa absoluta de investigadores sem paralelo com o que poderemos alocar em Portugal, isto se quisermos manter essa percentagem de referência.
Quer isto significar que se não fizermos entrar na equação a atração de talentos, os países com declínio demográfico terão obviamente um travão ao esforço de investigação.
Por isso, nas minhas aulas de economia da inovação e do conhecimento em fins da minha atividade académica insistia no facto de que mais tarde ou mais cedo a questão demográfica haveria também de ter efeitos na investigação científica e tecnológica, com a ressalva de que mais tarde ou mais cedo, na prática mais cedo do que o esperado a China iria também enfrentar uma transição demográfica difícil (ver posts anteriores sobre esta matéria).
Os dois gráficos produzidos pela Economist e que constam do blogue do meu colega do lado dão-nos conta da ultrapassagem relativamente recente que a China realizou aos países então mestres da investigação científica e tecnológica em matéria de artigos científicos de impacto e de número de publicações com citações a nível mundial.
Todos sabemos que o indicador de citações enfrenta enviesamentos determinados por nacionalismos de citação e o gráfico acima, com a vénia devida a Noah Smith, mostra que os BRICS são particularmente conhecidos por usarem e abusarem da citação de artigos nacionais. É assim possível afirmar que provavelmente o ranking chinês esteja sobreavaliado, mas não podemos ignorar o forte crescimento das despesas de I&D realizadas pela China, a caminhar rapidamente para o valor norma na fronteira tecnológica dos 2,5-3% do PIB, com o alerta de que a I&D chinesa é essencialmente realizada em grandes empresas privadas ou públicas, com a investigação pública universitária muito longe desses valores. Disso a Huawei é um bom exemplo, embora abaixo dos grandes gigantes americanos.
O gráfico do Economist reproduzido acima mostra com clareza que o impacto da ciência chinesa não é seguramente relevante nas ciências da saúde e da vida (neurociências e clínica médica, por exemplo), mas sim altamente relevante em áreas mais diretamente ligadas às referidas empresas – materiais, química, engenharia, computação, o que está em linha com o modelo chinês. E não esqueçamos obviamente a produção em massa de licenciados STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Medicina), onde a questão demográfica volta a instalar-se.
Resumindo, o meu ponto parece justificado: mais atenção tem de ser dedicada à ciência chinesa, o que para efeitos de ponderação dos equilíbrios mundiais não pode ser ignorado.
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