sábado, 1 de junho de 2024

EXCEDENTE, SULTÕES E PELO MENOS DUAS TURQUIAS

 

(São cinco da tarde. Recupero forças de tanto calcorrear no hotel perto da zona da Universidade de Istambul, que magnífica porta esta, quando a melodia das cinco orações do dia acompanha melancolicamente esta crónica. A melopeia da oração parece não estar em linha com a força fervilhante desta Cidade. Hoje, em torno do Bazar das Especiarias vi mais burkas do que nos dias anteriores e também hijabes muito diversificados, mas há uma outra Istambul, que direi maioritária, em que as mulheres assumem o corpo mais do que esperaria. Ontem, quando descíamos a grande rua comercial de Istiklal no pujante bairro de Galatasaray, vibrante na sua afirmação comercial, em direção a um restaurante, fomos surpreendidos com uma oração de cerca de 60 homens ajoelhados, que parecia não estar em linha com o consumo e lazer que se respiravam naquela rua. O guia apressou-se a informar-nos que os turcos não rezam na rua, sugerindo que se trataria de população árabe, talvez islamizada, não faço a mínima ideia. Visita organizada que se preze não poderia escapar a um passeio de barco pelo Bósfero, mais propriamente começando pelo Corno de Ouro, evoluindo depois alguns quilómetros pelo estreito do Bósforo para sentir melhor o confronto entre as margens europeia e asiática. É a perspetiva dos dois canais que permite ter uma melhor perspetiva da imensidão de mesquitas e palácios, a subida à Torre Gálata também de certo modo o permite, e foi nesse registo que me veio à lembrança a espantosa dimensão do excedente apropriado pelo império otomano para permitir tamanho investimento sumptuário.)

O modelo do sultanato é uma organização matriarcal (a figura central da Mão do sultão deve ser destacada) que vale a pena ser estudada e basta calcorrear os fabulosos palácios de Topkapi e de Dolmenache para o compreender. Mas o modelo não é inteligível se não tivermos em conta o papel da acumulação de excedente, afinal o verdadeiro alimentador de todo o investimento sumptuário que suporta e identifica o modelo. Outra realidade conexa é o poder de comando e submissão que é necessário reunir e aplicar para viabilizar a construção sumptuária, em alguns casos obras de uma grande complexidade de construção, exigentes obviamente em termos de arquitetura e engenharia, mas que seriam impossíveis de construir sem esse poder de vinculação e organização de massas gigantescas de força de trabalho.

Outra dimensão de poder, neste caso político, também ela espantosa, é a que foi possível reunir quando Ataturk iniciou a modernização ocidentalizada da Turquia e terminou com o modelo do sultanato. Ninguém imagina como hoje seria possível a criação de uma força política mobilizadora e de mudança como a que tornou possível a modernização turca, hoje de novo encravada nas malhas do poder de Erdogan.

E por falar em excedente, interrogo-me hoje por que caminhos andará hoje a economia turca. As linhas mais conhecidas, exportação de manufaturados e turismo continuarão a fazer sentir a sua influência, interrogando-me qual o peso da financeirização da economia turca e de que modo está a Turquia a tirar partido da sua hábil posição diplomática – ser membro da NATO e manter portas de cooperação com a Rússia e a China. Hoje, no passeio pelo Bósforo, vários cargueiros zarpavam provavelmente em direção ao Mar Negro, afirmando a relevância daquele canal para manter a Ucrânia conectada com o mundo em termos de escoamento do seu trigo.

O short break está a acabar, por isso é que se chama assim. Está cumprida a etapa de conhecer Istambul. Acabar subjugado pela imagem do Bósforo justifica a penosa obrigação de um voo que parte de Istambul pelas oito e quinze, ou seja, uma noite mal dormida.

 

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