(É tempo de S. João e por isso o tema deste post deveria ser mais distendido. Ontem, de manhã relativamente cedo, tive de ir à Cidade, mais propriamente na zona que designo regularmente de distrito artístico da Faculdade de Belas Artes e o ambiente de leveza esfuziante era já notório, com a grande maioria dos turistas que percorrem aquela zona da Cidade a pressentirem grandes atmosferas para essa noite. O tempo vai ajudar e mesmo que a noite possa estar mais húmida que o dia, será seguramente refrescante para uma mais que provável canícula de início de estio. O aniversário de uma Amiga próxima tem-me impedido de regressar às atmosferas do S. João e é por isso com um ruído ao longe de uma Grande Noite que o S. João me invade, cruzado com os balões que sobem e atravessam os céus metropolitanos num autêntico milagre divino de não provocar acidentes ambientais mais graves e com o estrondo do fogo de artifício, estes chineses! Mas, apesar deste tom potencialmente de festa e estou em crer que o perfil de turista médio do Porto deve adorar as atmosferas do S. João, o tema central do post de hoje é bem mais deprimente do que o ambiente são joanino. A política está a ser atravessada por sinais de degradação moral que anunciam o pior. Estou em crer que fui dos primeiros em Portugal, anos 80, a destacar a relevância da degenerescência da base moral da economia portuguesa, cujas implicações para a atividade de regulação do capitalismo português estão muito longe de estar plenamente endogeneizadas. Essa minha reflexão deu origem a uma comunicação à primeira conferência do então CISEP no ISEG e recordo-me que a saudosa professora Manuela Silva apreciou bastante esse texto e o discutiu comigo numa sessão preparatória da Conferência. Pois, entendo que essa degenerescência da base moral está a estender-se à política portuguesa, com consequências catastróficas para a necessidade de captar, e não de afastar, mais cidadãos para a política portuguesa.)
Esta minha tese global está muito provavelmente num estádio ainda demasiado impressivo e requer reflexão adicional e captação de evidência mais diversa do que a tenho podido reunir até ao momento.
Por isso, vou limitar-me a dois simples exemplos que evidenciam o que de pior poderá estar a formar-se nas entrelinhas da relação complexa entre política, comunicação social e a ação predatória e claramente intrusiva do Ministério Público, interferindo descaradamente no decurso do tempo político em Portugal.
Aquilo a que assistimos, confesso que, aos primeiros minutos, desisti enojado de acompanhar tão lamentável episódio, no inquérito parlamentar do chamado caso das gémeas perante a Mãe das miúdas, é degradante no plano moral para qualquer parlamento, sobretudo para um Parlamento que comemora cinquenta anos de revolução democrática. A moral na política constrói-se em torno de valores mínimos inabaláveis e esses foram ultrapassados pela ação ignóbil de um Ventura que é capaz de se ajoelhar numa Igreja qualquer para consumo eleitoral e protagonizar em simultâneo a mais ultrajante ultrapassagem e ignorância dos valores da decência.
Quanto à divulgação das escutas laterais da Operação Influencer, e quão hipócrita é a abertura de inquérito sobre mais esta violação do segredo de justiça, ela mostra com clareza que a degenerescência moral chegou à justiça e ao modo como certos elementos do Ministério Público a estão a exercer colocando sérios problemas à tese de uma justiça desejavelmente independente. A divulgação das escutas laterais e a voracidade com que uma certa comunicação social portuguesa a trabalhou (para efeitos de guerra comercial essa divulgação é um verdadeiro maná) de maneira objetiva a prejudicar solenemente a pretensão de António Costa à presidência do Conselho Europeu é um caso aberto de imoralidade nas relações entre justiça e comunicação social. Confesso que não sou um adepto fervoroso da grande agitação que existe para a escolha do Presidente do Conselho Europeu. Não é que duvide da competência de António Costa para o assumir. Mas sou dos que penso que um órgão que conseguiu ter ao leme um personagem como Charles Michel (os belgas que me perdoem) não será propriamente um lugar entusiasmante, sobretudo se for confirmada a orientação inicial do mandato se alongar apenas por dois anos e meio.
Compreendo que a situação é tão grave e padece de imoralidade tal que pode justificar-se o sábio desabafo de António Barreto, defendendo que talvez a única solução seja a de proibir constitucionalmente as escutas. A evidência mais gritante que estamos perante sinais assustadores de imoralidade na relação entre a justiça e uma certa comunicação social é o facto das notícias resultantes das fugas de informação serem apensas aos autos como elemento de prova associada aos processos. Chamar-lhe-ia a “pescadinha de rabo na boca da relação entre o Ministério Público e a comunicação social. A imoralidade dessa interdependência constitui um risco assinalável para as liberdades individuais, das quais a justiça deveria ser o principal garante.
Ora, quando essas liberdades estão ameaçadas, e essa ameaça é suscitada a partir de um dos edifícios da justiça, é tempo de fazer o reset da máxima “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política”. É tempo da política que ainda se rege pelos valores da liberdade dar um murro na mesa e repor as coisas nos eixos. Se é necessário ter coragem moral para o fazer? Sim e muita Mas não parece haver outra solução, sobretudo quando os que navegam na degenerescência da base moral, neste caso da justiça, se arvoram o direito de pisar todas das linhas da decência de comportamento.
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