sexta-feira, 21 de junho de 2024

SOBRE A MAL-AMADA, MAS ESSENCIAL, NEGOCIAÇÃO COLETIVA

 


(O CRL – Centro de Relações Laborais, centro de apoio aos parceiros sociais, de cujo Conselho Científico sou membro há já alguns anos, organizou hoje uma sessão pública para apresentação do trabalho “Estudo sobre a Negociação Coletiva em 1999 e 2019”, com presença da nova Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social Professora Maria Rosário Ramalho. Este vosso Amigo foi convidado para comentar o referido estudo, em companhia do prestigiado Professor António Monteiro Fernandes, para o qual preparei uma pequena intervenção que está disponível na versão digital da sessão de apresentação do referido estudo. O post de hoje é uma síntese dessa minha intervenção sobre um tema que particularmente aprecio e que deu inclusivamente origem a um artigo conjunto com a Amiga de sempre Professora Maria Pilar González, publicado na obra coletiva coordenada por Daniel Vaughan-Whitehead .com o alto patrocínio e financiamento da Organização Internacional do Trabalho com sede em Genebra – Towards Convergence in Europe – Institutions, Labour and Industrial Relations.)

Não sendo propriamente um especialista do tema da negociação (contratação) coletiva, a investigação sobre o tema interessa-me especialmente do ponto de vista da análise comparativa das variedades do capitalismo e do chamado modelo social europeu. No meu entender, a negociação coletiva, especialmente se for articulada com o diálogo social (concertação social), representa um poderoso fator de diferenciação da adaptabilidade das economias modernas aos tempos de indeterminação que vivemos. O modo como a negociação coletiva evoluirá no futuro no quadro do aprofundamento do diálogo social marcará substancialmente a diferença no modo como o capitalismo conseguirá garantir à sua população ativa condições de vida compatíveis com as aspirações de hoje e com as qualificações da população.

O estudo agora apresentado pela equipa do CRL, sob a direção de Paula Agapito e do Professor da Universidade Católica Portuguesa Pedro Furtado Martins é um trabalho de grande utilidade, um esforço insano e rigoroso de recolha e sistematização de informação, completando o também meritório trabalho do CRL na produção de relatórios anuais sobre o tema. O estudo poupa-nos um tempo precioso, investigadores e analistas interessados no tema, tal é a riqueza da informação reunida e sistematizada neste trabalho.


(slide apresentado pela equipa do estudo)

Do ponto de vista metodológico, a equipa responsável pelo estudo é muito clara nos propósitos de limitar a análise a dois anos, 1999 e 2019, com todas as vantagens e inconvenientes do método estático-comparativa. Simplicidade e uma perspetiva comparativa mais direta e sistemática são atributos desta metodologia. Mas, obviamente, traz o inconveniente de não poder dizer nada de substancial sobre o “between”, ou seja, sobre os mecanismos que suportaram a mudança ou a estabilidade que vemos projetada em dois momentos do tempo. O Professor António Monteiro Fernandes referiu-se a um certo desalento provocado por não ser possível com o caderno de encargos a que o CRL esteve obrigado aprofundar conhecimento sobre períodos intermédios tão importantes, com destaque para o período da crise das dívidas soberanas e intervenção da Troika no país, mas a verdade é que o âmbito do estudo era este e não outro. Mas mesmo nessa perspetiva de estática comparativa, o estudo é um desafio a investigação futura, no sentido de desbravar com maior minúcia estes 20 anos limitados por aquelas datas. E, numa perspetiva incremental de produção de conhecimento, este estudo tem o papel de justificar novos desenvolvimentos e estou certo que no âmbito do próprio CRL poderá surgir essa oportunidade.

Como prova de honestidade intelectual e de rigor, os autores do estudo alertam sistematicamente para os perigos da interpretação dos dados coligidos, sempre que um dado valor de 1999 ou de 2019 justificam essa atenção e a ponderação dessa limitação.

Uma característica importante do estudo é a rigorosa contextualização legislativa que enquadra os dois anos selecionados, não só em termos de legislação laboral em sentido estrito, mas igualmente sobre matérias integradas progressivamente na negociação coletiva, como por exemplo a conciliação da vida profissional e familiar, a flexibilidade de horários e outras mais. Nos 20 anos decorridos entre as duas datas, registaram-se importantes alterações da legislação laboral (Códigos de 2003 e 2009), com reflexões nas convenções coletivas e outras formas de negociação coletiva. A informação legislativa reunida é preciosa, especialmente em domínios em que as possibilidades abertas pela nova legislação acabam por não ser concretizadas na negociação entre parceiros. É o caso, por exemplo, da possibilidade, em certas circunstâncias, da negociação coletiva poder conter disposições mais gravosas para o trabalhador do que as fixadas na lei e a possibilidade das organizações sindicais poderem delegar nas Comissões de Trabalhadores a participação em acordos de empresa. Segundo o estudo agora publicado, nenhuma dessas possibilidades foi concretizada na negociação entre parceiros e pode ser relevante explicar as razões.

A vastidão de informação reunida neste relatório é de grande utilidade para avaliarmos se Portugal acompanha ou não as grandes tendências da negociação coletiva, bem expressas por exemplo no capítulo quinto do Employment Outlook 2019 da OCDE, que mobiliza o estado da arte da investigação sobre esta matéria.

O trend que esse Employment Outlook nos permite identificar, extensivo aliás a bibliografia publicada depois dessa data e pós-COVID pode ser designado por tendência para a descentralização do processo de negociação coletiva. Afastemos desde já a falsa ideia de que essa descentralização quererá significar que caminhamos para um universo de determinação individualizada dos salários. A descentralização tem vindo a evidenciar-se, mas devemos dizer que os manuais académicos que continuam a ver a determinação do salário como um processo de relação individualizada entre empregador e trabalhador não deixaram de ser uma grotesca deturpação e simplificação da determinação do salário direto e indireto. As variedades de descentralização da negociação coletiva são imensas, mas praticamente todas essas modalidades partem de um processo centralizado de negociação coletiva ao qual se juntam processos mais descentralizados designadamente ao nível da empresa.

Para esta errada interpretação do que a descentralização da negociação coletiva representa contribui em grande medida a evolução de duas variáveis largamente com ela correlacionadas – a taxa de sindicalização e o grau de cobertura da negociação coletiva. A estas duas variáveis poderíamos adicionar uma outra cobertura a do associativismo dos empregadores, que mediria a percentagem de trabalhadores empregados em empresas inscritas em associações empresariais.

A taxa de sindicalização, embora com diferenças abissais entre as economias escandinavas, no topo da representatividade sindical, e os EUA (quase no grau zero, 10%, da sindicalização), tem apresentado uma declarada tendência para a diminuição a partir desses pontos de partida. A explicação cabal dessa tendência é mais complexa do que parece, incluindo a integração das razões explicativas da taxa de sindicalização entre os trabalhadores mais jovens ser muito baixa. O que existe seguramente é uma relação consistente entre a evolução da taxa de sindicalização e a mudança estrutural da economia e do emprego. Isto não ignorando os problemas do cálculo da própria taxa de sindicalização: que denominador utilizar? Apenas o universo dos trabalhadores com regimes típicos de emprego ou como a OCDE lhes chama, trabalhadores-padrão, ou teremos de ter também em conta os trabalhadores atípicos com regimes de precariedade elevada? A OCDE, por exemplo, calcula as taxas de sindicalização apenas para trabalhadores-padrão, realizando depois ajustamentos para integrar a dimensão do trabalho atípico. Portugal é dos países que, compreensivelmente, melhora bastante essa taxa com os referidos ajustamentos.

A outra variável – grau de cobertura da negociação coletiva – experimenta também uma tendência para queda generalizada na Europa, mas normalmente a taxa de cobertura da negociação coletiva é sempre mais elevada do que a taxa de sindicalização, através de diferentes modalidades de extensão das convenções coletivas a trabalhadores não sindicalizados nas entidades que assinam os acordos.

O que a mais moderna bibliografia nos mostra é a evidência de que a desconexão entre as duas variáveis pode estar a aumentar. Os países escandinavos são um bom exemplo dessa desconexão – mesmo nesses países a taxa de sindicalização está a descer, mas nem por isso a taxa de cobertura da negociação coletiva tem vindo a acompanhar essa tendência. O valor médio referido para a Europa é em torno dos 70%, que contrasta bem com o valor muito mais baixo da taxa de sindicalização de 30% para a média OCDE.

A comparação entre os anos de 1999 e de 2019 em Portugal parece revelar segundo o estudo alguma estabilidade na negociação coletiva. Mas um dado que me despertou a atenção foi a evolução diferenciada do número de contratos coletivos e de acordos de empresa, a ponto de nos mais recentes anos, a distribuição entre essas duas categorias ser paritária.

Ou seja, tema para reflexões futuras, a descentralização da negociação coletiva parece também ter chegado a Portugal, não ignorando é certo o peso da negociação centralização que a lógica setorial tem imprimido à negociação no país. Parece-me inevitável, dada a relevância da esfera empresarial.

 

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