segunda-feira, 17 de junho de 2024

NÃO SÃO APENAS QUESTÕES DE SEMÂNTICA POLÍTICA!

 


(As democracias que considerávamos avançadas estão como sabemos mergulhadas numa profunda polarização que, entre outras consequências, desafia nomenclaturas e terminologias a que recorríamos sem grandes problemas para mapear as forças políticas que operam nesses sistemas. Categorias novas como os populismos de direita e de esquerda vieram abanar todos esses referenciais e à direita existe hoje um problema sério de delimitação entre a direita e a extrema-direita, com reflexos inequívocos no posicionamento do eleitorado que se pretende mobilizar. Isso acontece porque, em muitos países, com a França e a Itália à cabeça, mas também noutros países como Portugal, a extrema-direita afirmou-se, não através de golpes ou tomadas violentas do poder como sucede por vezes na América Latina e em África, mas através da utilização do próprio jogo democrático, isto é, apresentando-se vitoriosa ou quase em eleições para os respetivos parlamentos. E, mesmo aqui, existe a gradação não menos importante entre chegar ao poder por essa via, como é o caso de Meloni em Itália, ou de poder estar à beira de consumar essa possibilidade como em França, acaso o Grand Rassemblement de Le Pen consiga ser vitorioso nas mais disputadas legislativas francesas de sempre. Obviamente que, por vários motivos, se tornará cada vez mais difícil diferenciar nesse contexto a direita e a extrema-direita, sobretudo porque esta última insiste que estará a jogar o jogo democrático e a primeira tenderá a mimetizar políticas do agrado da extrema-direita em matéria de liberdades, de controlo da imigração, de manifestações de xenofobia. Este imbróglio, não apenas semântico, é o foco deste meu novo post.)

O chamado conservadorismo político está, assim, em franca convulsão, com evidências generalizadas de que os partidos de direita conservadora mais tradicional estão a braços com grandes perturbações internas, como é o caso paradigmático da França, mas também de Inglaterra, onde os Conservadores jogam honra e tradição nas próximas eleições, acossados por um estranho regresso do populismo de Farage, que não desiste de infernizar a vida a Sunak e seus pares, visível por exemplo no número de personalidades conservadoras que declararam não querer ir a votos.

Existem, por isso, analistas políticos que insistem eles próprios no que consideram ser a linha vermelha crucial para continuar a distinguir entre a direita e a extrema-direita. Gideon Rachman, cronista do Financial Times para as questões internacionais, é um desses exemplos e o critério parece simples: o respeito pela democracia e o primado da lei seriam segundo Rachman a divisória-limite. A formalidade do critério parece compreensível, mas, em meu entender, à medida que novas forças de extrema-direita cheguem ao poder pela via de eleições livres (em Itália já lá está e em França a probabilidade é elevada) as condições em que o exercício do poder é concretizado, designadamente do ponto de vista das liberdades para a preparação de alternativas democráticas, constituem um domínio de aprofundamento necessário do referido critério. O exemplo da “democracia iliberal” da Hungria vale a pena ser estudado como exemplo de cerceamento claro de condições para a formação livre de alternativas, como aliás Anne Applebaum nos mostrou no muito convincente Twilight of Democracy ou então Masha Gessen nos alertou também no Surviving Autocracy.

Estou convicto que, do ponto de vista do combate da esquerda, a distinção entre direita e extrema-direita deixa de ser um instrumento operativo de formatação da luta política, passando pelo contrário a colocar toda a importância nos valores ou derivas que quer combater. Mas, reconhecendo embora que a democracia e o primado da lei são critérios firmes (por esse critério, a negação de resultados de eleições livres por parte de Trump e seus sequazes coloca-os do lado da mais feroz extrema-direita), haverá que estar atento à transição de forças de extrema-direita para o lado do sistema democrático (acesso ao poder por via de eleições livres). O escrutínio das condições concretas de exercício do poder passará a ser fonte de escrutínio rigoroso, particularmente do ponto de vista da criação de igualdade de oportunidades para a formação de alternativas democráticas. Aliás, será, a meu ver, na qualidade e rigor desse escrutínio que poderá ser construída a viabilidade de alternativas que permitam apear os reconvertidos da extrema-direita do poder e regressar ao mapeamento que conhecíamos.

 

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