quarta-feira, 6 de abril de 2022

A INÉRCIA DO ILIBERALISMO NA UNIÃO EUROPEIA

 


(Já há bastante tempo que os avanços na União Europeia acontecem mais por reatividade penosa a pressões exógenas do que por efeito de visões de futuro e proatividade associada. O produto dessa reatividade resulta sempre de equilíbrios sub-ótimos, de gestação penosa, obtida in extremis em reuniões prolongadas pela noite fora, desafiando o cansaço dos representantes nacionais. Aparentemente, a reação à invasão russa da Ucrânia terá sido mais espontânea, de gestação menos atribulada, mas à medida que a violência e revelações escabrosas sobre a barbárie russa se sucedem torna-se evidente que as decisões vão sendo cada vez difíceis de obter, senão mesmo impossíveis. Como pano de fundo de toda esta complexa governança, a existência no interior da União de processos iliberais e de conteúdo democrático duvidoso continua a concorrer com a realidade das insanáveis contradições que decorrem de diferentes maneiras de estar e de posicionamento na União protagonizados por alguns países. Se, no primeiro caso, a Hungria e a Polónia são os expoentes dessa ameaça, com a Eslováquia como principal candidato a entrar no grupo, no segundo, a Alemanha campeia, haja dominância da CDU ou do SPD – Verdes-Liberais.)

Quando se olha para o posicionamento do Ocidente e da União Europeia a propósito da invasão russa da Ucrânia, ocorre-me a metáfora das lentes utilizadas para essa observação. Comparando o rigor das lentes utilizadas com o nível de abstração na análise, num primeiro olhar sobre a referida realidade parece retornar a unidade do pensamento atlântico (EUA-Canadá-Europa). Mas quando avançamos no pormenor de análise, mobilizando as lentes mais adequadas para o conseguir, logo percebemos que a aproximação EUA-União Europeia tem escolhos a superar e, mais importante ainda, a própria União Europeia tem limites ao desenvolvimento de posições mais avançadas.

Neste outro olhar, existem dois tipos de questões, das quais só uma será tratada neste posto.

Uma dimensão de problemas que tem surgido claramente nos últimos dias são as contradições observadas entre interesses nacionais e interesses da União para ser possível uma posição mais dura em matéria energética face à fonte objetiva de financiamento da agressão russa que resulta de se comprar gás natural e petróleo à Rússia com a magnitude conhecida. A Alemanha e a Áustria deixaram a sua dependência energética avançar para níveis muito além do aceitável, não só em termos nacionais, mas também em termos de geopolítica europeia. Não é novidade que num projeto como a União haverá sempre contradições entre interesses nacionais e comunitários. A governança do projeto implicará sempre uma sábia abordagem dessas contradições, aliás como tem acontecido historicamente e que é visível quando revemos o filme do desenvolvimento progressivo da União. A ameaça de uma guerra em território europeu poderia constituir paradoxalmente a ocasião certa para selar alguns desses marcos evolutivos. Porém, quando a magnitude das contradições é demasiado elevada, obviamente a sagacidade da governança não é suficiente. O embargo da importação de gás e petróleo russo provavelmente não passaria nos parlamentos alemão e austríaco. Não era este, entretanto, o tema do post de hoje. Claro que o assunto merece monitorização atenta. Mais importante do que reconhecer a não exequibilidade do referido embargo, interessa sobretudo analisar que transição está a ser praticada para reduzir aquela dependência energética e assim ir diminuindo a magnitude da contradição.

A outra dimensão decorre da emergência, denunciada atempadamente por muita gente e olimpicamente ignorada pelas autoridades comunitárias e alguns partidos políticos no Parlamento Europeu, de regimes iliberais nas democracias europeias. O padrão do iliberalismo não é homogéneo. O caso húngaro e a deriva polaca não têm a mesma natureza e isso talvez dificulte a sua teorização e o trabalho sobre uma forma democrática e comunitária de tentar suster e mitigar a ameaça que representam. Claro que existem dimensões comuns, como a negação da diversidade social e cultural, em flagrante contradição com os valores europeus. No caso polaco existe uma dimensão de conservadorismo religioso, com perigosas incursões sobre a independência do poder judicial. O caso húngaro é um caso mais vasto de uma formação política, o FIDESZ e de uma personalidade, Viktor Orban, que construíram uma teia complexa de subalternização e controlo de todos os aparelhos que poderiam permitir o avanço de alternativas democráticas. Tenho menos informação sobre o caso polaco do que sobre o iliberalismo húngaro. Bastaram-me os escritos de Anne Applebaum, particularmente do Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism (analisado neste blogue, aqui e aqui) para compreender a dimensão da teia e as margens estreitas de uma alternativa democrática para correr com Orban e seu séquito).

 


Tudo indica que, para além das contradições que a dependência energética da Alemanha e da Áustria coloca ao posicionamento da União, os iliberalismos polaco e húngaro vão perfilar-se no horizonte próximo em sucessivos contratempos de decisões europeias em relação à Rússia e não só. A Polónia acaba de vetar o IRC mínimo de 15% na União Europeia, adiando uma decisão importante para uma moderada evolução no sentido da harmonização fiscal. Qualquer endurecimento da política europeia face à Rússia terá de ser habilmente discutido neste contexto. E a Polónia, paradoxalmente, disponibiliza-se para acolher ogivas nucleares norte-americanas e o reforço de tropas. Tempos complexos estes.

Na Hungria, Orban acaba de vencer a grande plataforma de oposição que se formou para o tentar apear por via democrática, confirmando a minha impressão do desafio enorme colocado pela teia gigantesca de compra de interesses que o FIDESZ tem vindo a montar. É verdade que na população urbana e mais qualificada Orban terá perdido, mas a verdade é que a sua quarta vitória eleitoral sugere que para aquelas bandas o iliberalismo compensa.

Tal como Bíró-Nagy o assinala no New York Times (link aqui), o iliberalismo de Orban alimentou-se sempre de inimigos para marcar a sua posição de salvador circunstancial. Esses inimigos foram muitos e variados: a ameaça das migrações, a opressão das instituições europeias, as pretensas cabalas de George Soros, as ONG, os liberais ocidentais, o FMI e para esta eleição as garantias de paz e de segurança para o povo húngaro. Devo salientar que nestas eleições as putativas garantias de paz e segurança tiveram de contrabalançar, para além de uma plataforma ampla de oposição, a inflação a dois dígitos e a recente decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, que dá poderes à Comissão Europeia para congelar fundos europeus a países que não respeitarem as regras do estado de direito. O que diz bem da força da ameaça existente no interior da União.

Entretanto, Ursula von der Leyen, anunciou, esta terça-feira, a decisão de Bruxelas de acionar o mecanismo de condicionalidade do Estado de direito contra a Hungria, o que pode comprometer a receção de verbas do PRR húngaro. Resta saber se os expedientes legais comunitários serão suficientes para moderar o iliberalismo de Orban, agora reforçado por mais uma eleição e pela mais que provável ressaca da frente de oposição interna.

Em resumo, não parece que a guerra dentro da Europa seja por agora aquele efeito exógeno ambicionado para mais um avanço na governança europeia. Aliás, seria caminhar para o absurdo consentir a tragédia ucraniana para consolidar internamente a própria União.

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