(Regresso ao tema para a sessão das Conversas Urbanas do Jornal Público e Associação Portuguesa de Urbanista, hoje, na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, pela tardinha. Dada a densidade do tema, optei por interações sucessivas. Comecei pela relação turismo e identidade e vou nesta segunda parte abordagem a relação entre turismo e gentrificação. A relação entre identidade e gentrificação resultará implícita destas considerações.
Começo por registar que submeter a análise dos efeitos do turismo, designadamente na Cidade do Porto, a uma perspetiva de gentrificação nos obriga a uma reconsideração do próprio conceito de gentrificação, esse sim um conceito segundo alguns investigadores caótico (o que não implica abandoná-lo), com uma evolução e complexidade também caóticas.
O conceito que foi cunhado pela socióloga inglesa Ruth Glass em 1964 (há quem diga que o referiu em artigos anteriores dos fins dos anos 50) para descrever o processo de deslocamento (expulsão) de residentes de bairros operários londrinos com a chegada de classes médias, gente mais rica e educada, processo acompanhado de mudanças de regimes de propriedade, arrendamento por casa própria. O processo generalizadamente estudado em diferentes ciências sociais foi evoluindo em função da inserção urbana das cidades na economia global e sobretudo com as novas gerações de gentrificadores (a “gentry”): boémia criativa em busca da geografia do “cool” e da tolerância, renovadores de posses médias, uma nova classe média mais afluente, investidores empresariais e agentes de desenvolvimento imobiliário, bancos e promotores imobiliários, o próprio Estado e Autarquias focadas em grandes operações de renovação urbana, em que a procura de novos “mixes” sociais aparecia como instrumento de políticas sociais anti-exclusão social. De todas estas dinâmicas, a do efeito de recomposição social é em meu entender a que vale mais a pena ser analisada em profundidade, e que é fortemente dependente de saber se há efetivamente deslocamento ou expulsão de residentes, saídas voluntárias ou involuntárias. As evidências empíricas demonstradoras da bondosa hipótese do novo “social mix” são senão nulas, pelo menos escassas na literatura e, por isso, a gentrificação tem uma carga fortemente negativa de segregação, polarização e deslocamento. Para complicar, trata-se de um processo que é contexto-dependente e o lugar que a cidade ocupa na hierarquia funcional da economia global é determinante. Só para relativizar esta questão, quando alguns autores consideram a gentrificação de Bruxelas ou de Montreal moderada devido ao seu débil lugar na hierarquia funcional global, o que poderemos dizer do caso do Porto, com as devidas proporções de internacionalização comparadas.
Depois parece haver motivos muito diferenciados entre os gentrificadores (os que entram de novo), registando-se uma grande consenso de que os objetivos de procura da diversidade, da tolerância e do tal “mix social” entre os gentrificadores iniciais (a boémia criativa) são substancialmente distintos dos gentrificadores de última geração.
Ora, quando se faz intervir o turismo nesta equação, há que registar desde logo que o turismo não traz novos residentes, com exceções marginais ditadas pela recomposição do emprego e possíveis implicações na atração de nova função residencial. Ora, a gentrificação é um processo em que a chegada de novos residentes à Cidade, a gentry, tende a provocar recomposições sociais, de uma das formas mais agressivas é a expulsão ou deslocamento de residentes originais. Claro que o turismo pode gerar efeitos indiretos de gentrificação sem o afluxo de novos residentes: a renovação urbana focada no alojamento local pode expulsar residentes, na sequência do que ficou vulgarmente conhecido por “rent gap” (emergência de novas oportunidades lucrativas com o boom do alojamento local) e também por via do efeito sobre o preço do solo, de venda de construído e de arrendamento. O que significa que podemos ter efeitos de polarização e deslocamento sem a chegada de novos residentes, uma espécie de gentrificação imperfeita ou de segunda ordem.
Em bom rigor, haverá que confirmar se o boom do alojamento local foi concretizado a partir de parque habitacional já não ocupado na sequência do declínio demográfico e expectante quanto a possíveis mudanças na lei do arrendamento, ou se, pelo contrário, a renovação determinou a expulsão e o deslocamento de residentes, qualquer que seja o seu estatuto socioeconómico.
Nesta matéria, entendo que o contrafactual é relevante. Segundo o que tenho podido apurar, a gentrificação não parecia instalada na Cidade antes do boom turístico. Os casais jovens mais afluentes tinham outros padrões de procura residencial que não apontavam para o Centro da Cidade e suas imediações e contiguidades. Havia obviamente o fluxo regular de anual de estudantes, largamente reforçado com o fenómeno ERASMUS, que sempre criou um mercado de arrendamento sazonal, com os proprietários atraídos pela sua flexibilidade contratual. Talvez o turismo tenha contribuído para uma nova atração de gentrificadores, que cavalgaram a onda da reabilitação para venda ou arrendamento que o boom do alojamento local induziu. Mas não tenho evidência de que o turismo esteja a provocar a subida do nível de rendimento médio de residentes na zona central da Cidade.
Certamente que do ponto de vista da recomposição da base produtiva e do emprego e da animação urbana (as atmosferas da convivialidade) o turismo é hoje um determinante fulcral. Todos o pudemos confirmar com dois anos de COVID e sobretudo com os períodos de confinamento mais rigoroso. Porém, do ponto de vista físico, o impacto da renovação urbana -alojamento local é marcante e muito provavelmente sem esse impulso, excessivo ou não, não teria sido possível atingir o nível de renovação do parque habitacional e de equipamentos entretanto alcançado. É ainda cedo para concluir se parte desse parque habitacional, hoje sem utilização ditada pela queda da procura turística pode ser ou não mobilizada para uma política mais robusta de atração de novas famílias à Cidade. As tipologias de alojamento local podem não ser moldáveis à procura-chave para corporizar essa atração.
Finalmente, atrevo-me a concluir que, até agora, as correntes de procura turística dominantes na Cidade parecem não ser incompatíveis, antes as valorizam, com as atmosferas da convivialidade típicas do “social mix” à moda do Porto. Turistas, designadamente os mais jovens, alunos Erasmus e população local parecem conviver bem com a dinâmica interclassista que caracteriza ainda hoje largas partes do território da Cidade. O meu ponto de observação preferencial, por motivos familiares, é o do distrito das Belas Artes, que foi aliás uma zona da Cidade em que a renovação para o alojamento local mais avançou.
Por conseguinte e em resumo, mixed feelings sobre a relação turismo e gentrificação.
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