segunda-feira, 4 de abril de 2022

O DESASTRE DA ESQUERDA FRANCESA

 


(Se nos colocarmos na perspetiva da análise política do longo curso, a evolução para o desaparecimento da esquerda francesa, seja do Partido Socialista Francês, seja de outras forças políticas capazes de com ele cooperar no quadro de estratégia de poder, emerge como um facto maior. É verdade que noutros países, Itália, por exemplo, a permanência de forças políticas de esquerda não radical foram concretizadas à custa de transformações de projeto e de ideário que cavaram fundo a sua vulnerabilidade e distância face à credibilidade eleitoral para aspirar à tomada sustentada do poder. O caso da esquerda francesa é muito provavelmente aquele que melhor representa a incapacidade da esquerda não radical em integrar e dar resposta a recomposições sociais de largo espectro em simultâneo com a transformação do próprio capitalismo e com os desafios não vencidos para o aprofundamento da globalização. Essa incapacidade é tanto mais manifesta quando a social-democracia vai resistindo em muitos países, não interessa agora saber sob que forma e projetos.)

Na altura em que escrevo, o Presidente Macron parece de novo ter os calcanhares sob a ameaça de mordidela por parte de Marine Le Pen, apagando o que pareceu ser o resultado negativo (para Le Pen) da sua proximidade excessiva às teses Putinistas. O movimento de Le Pen (Le Grand Rassemblement) parece poder dar-lhe numa segunda volta entre 45 e 47% dos votos, o que a coloca na senda de uma possível vitória, acelerando uma ameaça que parecia ter sido contida. Na mesma linha, Victor Orbán conseguiu ontem a sua reeleição perante uma grande frente política húngara que visava a sua deposição. Parece assim prematura a ideia de que a invasão da Ucrânia teria tido o efeito colateral positivo de acantonar as derivas de democracia iliberal em que o populismo na Europa se tem apoiado. Este regresso de Le Pen com toda a probabilidade de animar uma segunda volta nas eleições presidenciais é sobretudo marcante pois passou, primeiro, por um acerto de contas interno à extrema-direita com Éric Zemmour. E, aliás, se a eliminação do populismo de extrema-direita tivesse de ser conseguida à custa da invasão da Ucrânia isso seria sempre um custo injusto e desproporcionado. Equivaleria a transferir para a infelicidade e martírio de outros os efeitos da incapacidade política de suster consistentemente tais derivas.

Mas não é esse o tema do post de hoje.

O tema de hoje é antes o do longo ocaso da esquerda francesa não radical, mais propriamente o declínio continuado do Partido Socialista Francês. Esse declínio adensa-se com as três derrotas consecutivas de 1993 (legislativas com Mitterrand como Presidente da República, 2002 com a não a ida à segunda volta das presidenciais de Lionel Jospin e a dupla derrota de 2007, presidenciais e legislativas). Nesse declínio, a vitória e posterior desaparecimento de François Hollande foi uma espécie de intermezzo fugaz, a ponto da ação de Hollande ficar para a história mais pelas suas escapadelas em motoreta para visitar noturnamente a sua amante do que propriamente por alguma ideia que tenha resistido à sua “débacle”. Acrescente-se que já antes se assistira ao desaparecimento do Partido Comunista Francês como força política capaz de influenciar resultados eleitorais.

É verdade que o PSF vai resistindo com algumas vitórias locais, mas quando essas personalidades se guindam ao patamar das decisões nacionais a sai irrelevância política manifesta-se cruamente. É o caso de uma das “mayors” de Paris, Anne Hidalgo, que tem batalhado em vão para se afirmar com algo do que os 5% de eleitorado.

É óbvio também que em França existe tradição do eleitorado em abdicar de cursos próprios, quando um candidato, mesmo que de direita ou de centro, surge melhor colocado para travar a chegada ao poder da extrema-direita. Uma notícia isolada que apanhei algures dava conta que Macron terá afirmado que pode ser derrotado, talvez com a preocupação de consolidar ainda mais essa tradição muito comum em segundas voltas de eleições em França, nacionais, regionais e locais. Mas a decisão do Presidente francês de renunciar à participação em debates pré-eleitorais pode baralhar essa tradição face ao Grand Rassemblement de Le Pen.

Do ponto de vista da ciência política e da sociologia dos declínios de grandes forças políticas, o caso da esquerda francesa é um permanente enigma. É verdade que se assistiu nos últimos tempos à perda de chama de influências de pensamento como eram as de Michel Rocard, Pierre Rosanvallon e outros. Como se uma longa transição etária estivesse a acontecer e isso penalizasse a transferência de pensamento para a ação política. E para adensar o enigma a perda de influência e declínio claro dos socialistas acontece num país que fez avançar o Estado Social (L´État Providence num dos escritos mais marcantes de Pierre Rosanvallon) talvez mais do que noutro país da Europa. Esses avanços resistiram inclusivamente a consulados políticos da direita como o foram o período de Sarkozy, aspeto bem documentado na obra coletiva publicada pela Organização Internacional do Trabalho e a editora Edward Elgar de Londres (The European Social Model in crisis, coordenação Daniel Vaugham-Whitehead) em que participei com a minha colega da FEP Maria Pilar González, o que de certo modo mostra a solidez dos avanços conseguidos.

As explicações têm oscilado entre a “direitização” da sociedade francesa e a “esquerdização” da direita francesa (link aqui).

A explicação que me parece, todavia, mais estimulante é a que se apoia na profunda recomposição da sociedade francesa em curso. Nos últimos tempos, essa profunda recomposição, embora não plenamente explicada, teve alertas de foco explicativo assinaláveis como o foram a islamização da sociedade francesa (dramatizada pela controvérsia dos lenços islâmicos nas escolas e ataques terroristas de 2015 e 2016) e o movimento radical dos “Gilets Jaunes” (link aqui). Toda esta recomposição acontece numa sociedade em que a perceção do seu declínio é partilhada por uma espantosamente elevada percentagem de população. Citada por James McAuley em artigo recente da New York Review of Books, um inquérito de fins de 2021 do The Economist apontava para 75% da população francesa com essa perceção do declínio francês. O Grand Rassemblement de Le Pen anda por essas franjas de recuperação de um tempo que não voltará mais. E isso também explica que, se no embate anterior com Le Pen, Macron utilizou magistralmente a Europa para a encurralar num debate a dois que ficou célebre, nesta eleição de abril o namoro com o nacionalismo francês estará no centro do posicionamento de Macron. O problema é que copiar o original corre quase sempre mal.

Mas em toda esta recomposição os socialistas franceses parecem marginalizados de qualquer centelha ou ideia criativa para abordar a complexidade deste fenómeno.

E termino com uma citação de Aucley que me parece ir na direção correta: “Esta é hoje a trágica evolução da grande tradição antimonárquica e anticlerical do republicanismo francês. O que foram durante décadas e mesmo séculos as verdadeiras causas da esquerda – secularismo, educação, igualdade de género, luta contra o antisemitismo – transformaram-se em instrumentos de uma mais ampla batalha cultural contra uma comunidade minoritária que uma verdadeira esquerda defenderia, protegeria e que em última instância incluiria”.

A esquerda socialista francesa parece ter-se perdido não numa manhã de nevoeiro, mas antes no desafio de um universalismo multicultural, sucumbindo à idiota pretensão e contra a corrente do mundo, incluindo o francês, do universalismo francês nostálgico, cantando em francês um “Oh tempo volta para trás” à sua imagem e semelhança.

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