domingo, 24 de abril de 2022

TUDO ESTÁ MAIS CLARO!

 


(O encontro com os arquitetos americanos da AIA Continental Europe no Auditório do Museu dos Soares dos Reis foi agradável e um prazer ouvir a Sofia Alves da Porto Vivo, o Paulo Farinha Marques da Faculdade de Ciências e a Teresa Cálix da Faculdade de Arquitetura do Porto, partilhar reflexões e uma vez mais ficar ciente de que nos encontramos cá dentro quando alguém de fora nos puxa. A mesa redonda moderada pelo vozeirão do Arquiteto Pedro Balonas excedeu as minhas expectativas e espero que tenhamos contribuído para que aquelas boas almas dos arquitetos americanos tenham uma outra visão dos 20 anos de transição no Porto. Depois desse esforço que interrompeu um fim semana alargado e merecido, aqui estou em Seixas para recarregar baterias, as da tola e não do veículo. Com o 25 de abril no horizonte imediato, uma reflexão sobre o que está cada vez mais claro na minha cabeça impõe-se, hoje na angústia dos resultados eleitorais em França, que também ajudam a que tudo fique mais claro.)

Entretidos que estivemos com as vicissitudes de acabamento do projeto europeu, com as crises das dívidas soberanas e problemas de falta de solidariedade intra-europeia, com os confinamentos e perigos de mortalidade pandémica que nos atormentaram os últimos dois anos das nossas vidas, com os rumos da globalização e sabe-se lá com que mais coisas, a verdade é que nos distraímos do problema central das sociedades ocidentais, que partilham os nossos principais valores. Por outras palavras, demos perigosamente de barato que a democracia estava garantida, estável e a salvo de populistas, por mais facínoras e oportunistas que se apresentem na cena pública e aproveitando a tolerância intrínseca dos sistemas verdadeiramente democráticos.

A forte aceleração por que passa a vida política nas sociedades ocidentais, com clivagens que o velho filósofo Jacques Rancière, na sua entrevista à revista do Expresso, situa para além do binómio esquerda-direita, introduzindo a nova categoria política do ressentimento como um perigoso agregador de uma multidão de descontentes:

Em tempos, houve um conjunto de ideias que tentaram opor-se à ordem capitalista. Hoje, essa oposição surge não no sentido de mudar a situação ou de incomodar a ordem dominante, mas como uma espécie de desespero que se traduz em ressentimento, que por sua vez se traduz em xenofobia, racismo, segregação. Em última instância, procura-se encontrar um ‘responsável’. Não havendo mudança possível, é preciso alguém em quem depositar a culpa”

Esta questão coloca no centro das questões aquela a que interessa efetivamente responder sem tibiezas, a sobrevivência da própria democracia. E de repente tudo fica mais claro. Haverá tempo para dirimir outras diferenças e clivagens. Por agora ou se defende a Casa Comum da democracia ou se abrem perigosas brechas na sua sustentação. Tudo se articula coerentemente em torno da angústia sobre os resultados das eleições de hoje em França, sobre o significado de comemorar o 25 de abril amanhã e sobre as grandes clivagens que a invasão da Ucrânia pela Rússia suscitou. Por isso, quando a democracia nos obriga a ter de suportar um execrável Loff, incomodado por ter de escolher entre Le Pen e Macron, simultaneamente ajuda-nos a compreender onde está a divisão essencial a manter, a defesa ou o ultraje da democracia, por mais imperfeita que ela se apresente nas suas configurações concretas nos diferentes países.

E é esta a grande questão sobre a qual temos de laborar continuamente. Isto não significa que as grandes querelas da distribuição mais equitativa, do respeito pelas minorias e foco na sua integração, da regulação possível da economia de mercado, da descentralização e da participação, da identidade dos povos em construção tenham de ser esquecidas e metidas na gaveta. A diferença fundamental consiste em reconhecer que toda essa discussão e querela política tem de ser acomodada numa intransigente defesa da democracia e das suas regras, por mais influência que esta defesa exerça em todas aquelas controvérsias.

Enquanto deposito o olhar nas aleluias que vão desaparecendo, é esta dimensão comum que liga numa só preocupação as eleições de hoje em França, a comemoração do 25 de abril amanhã e a guerra da Ucrânia. De repente, a aceleração da história determinou que tudo ficasse mais claro e está é a nova clivagem entre os lúcidos e não lúcidos. Os riscos de que os não lúcidos vinguem e predominem são incalculáveis. Em França, como o meu Amigo Leonardo Costa não se tem cansado de alertar, os franceses que aderem à máxima “Moi, je suis de gauche, mais je vote Le Pen” levam-nos a concluir que os Franceses estão loucos, podendo entregar uma potência nuclear a uma senhora de extrema-direita. A história continua a não ser uma matéria de aprendizagem coletiva.

Tenho a sensação horrível de que tudo pode estar por pontas.

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