sexta-feira, 22 de abril de 2022

COM MARGARET ATWOOD E ALBERTO MANGUEL

As honrosas funções que desempenho na Universidade do Porto têm-me permitido, entre muitas outras coisas que considero da maior relevância, o estabelecimento de contactos com personalidades admiráveis e que de outro modo não estariam facilmente ao meu humilde alcance. Há dias, conheci Olga Pombo, a professora da Faculdade de Ciências de Lisboa que veio proferir uma notável alocução de sapiência por ocasião dos 197 anos da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (“Interdisciplinaridade: desafio ou destino da Universidade?”) e que logo me levou à procura urgente de bibliografia sua nos escaparates da Fnac e da Bertrand.

 

Mas foi hoje que o momento mais alto ocorreu com a belíssima cerimónia da concessão do centésimo doutoramento honoris causa da Universidade do Porto à reputada escritora canadiana Margaret Atwood, um dos grandes vultos da literatura contemporânea, tendo aquela sido amplamente abrilhantada pelo facto de o respetivo elogio ter ficado a cargo do brilhante escritor, ensaísta, tradutor e editor que é o intelectual de origem argentina Alberto Manguel.





O elogio de Manguel é uma peça acabada de erudição que vale pelo todo que o consagra num verdadeiro tratado de análise literária; apesar de não dever por isso ser truncada, cometo tal erro para ilustrar o sentido do que acima afirmo com quatro breves excertos:

·       da sua experiência da natureza em estado selvagem, e das suas primeiras leituras de contos de fadas e romances policiais, Atwood construiu a paisagem da futura geografia da sua imaginação”;

·       a questão da identidade é central na obra de Atwood. ‘Quem ou eu?’ e ‘quem somos nós?’ surgem repetidamente nos seus textos, sob mil e uma formas”;

·       os seus romances procuram expandir ou exacerbar o que já existe na nossa realidade”, não podendo por isso ser definidos como ficção científica;

·       são os seus poemas que melhor expressam a sua filosofia ética e social”, já que “a exploração dos temas da injustiça, da repressão, da censura, do poder” e a “indagação sobre identidade sexual, familiar e cívica” da sua prosa “assumem facetas intensamente ambíguas e profundas na sua poesia”, permitindo ver de forma mais clara “o seu interesse pelo nosso destino humano comum”.


A escritora, como que dando confirmação ao argumento de Manguel, terminou o seu agradecimento à Universidade com um desses seus poemas (“The Moment”), que de seguida reproduzo:


The moment when, after many years

of hard work and a long voyage

you stand in the centre of your room,

house, half-acre, square mile, island, country,

knowing at last how you got there,

and say, I own this,

is the same moment when the trees unloose

their soft arms from around you,

the birds take back their language,

the cliffs fissure and collapse,

the air moves back from you like a wave

and you can’t breathe.

No, they whisper. You own nothing.

You were a visitor, time after time

climbing the hill, planting the flag, proclaiming.

We never belonged to you.

You never found us.

It was always the other way round.

 

Ao almoço, o relacionamento pessoal estreitou-se graças à sorte que me coube em termos de localização na mesa, exatamente ao lado de Manguel e com este ao lado de Atwood. Em suma, uma conversa muito estimulante, designadamente com alguns apontamentos daquele sobre a fase em que foi um muito jovem leitor de livros para Jorge Luis Borges, estando este envelhecido e já cego mas ainda desejoso de prosseguir a missão que considerava ser a sua no quadro do seu interesse quase único pela Literatura (abaixo o livro em que aborda esses tempos); mas sem esquecer as referências sempre atentas e preciosas da escritora (como aquela elucidativa indicação que deixou a dada altura sobre as quatro coisas essenciais na nossa passagem pela vida: o conhecimento, o equipamento adequado, o poder da vontade e a sorte). À despedida, no gabinete da Vice-Reitora Fátima Vieira (foto de abertura deste post), culminou assim aquelas horas: “women are not angels, but they’re not subhuman neither”...

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