quinta-feira, 28 de abril de 2022

ONDE É QUE JÁ VI ISTO?

(Num dos últimos posts e apoiando-me na capacidade pedagógica de Paul Krugman, deixei o alerta de que em matéria de inflação ainda não estamos naquela maléfica situação em que os preços sobem porque as expectativas formadas assim o determinam. Por isso, o cartoon abaixo reproduzido, com a qualidade habitual a que a New Yorker nos habituou, embora sedutor, é apenas isso, uma peça de humor. Para além disso, vai sendo publicada informação mais analítica que nos permite compreender melhor o encadeamento observado entre a chamada inflação COVID e a gerada nas disrupções da guerra, que pensávamos afastada para sempre do rosário de condições inflacionistas. E uma sensação estranha instala-se, pois os resultados apontam para uma regularidade: salários e lucros não são igualmente atingidos pela inflação.)

                                      ("While you were deciding, we raised our prices", New Yorker)

Josh Bivens analisa no blogue do Economic Policy Institute os contornos analíticos da inflação COVID na economia americana, considerando o encadeamento observado entre os efeitos pandémicos e os da guerra da Ucrânia, complicando assim o que já era demasiado complicado, dada a incidência registada na economia mundial.

O gráfico que abre este post permite comparar dois períodos, o longo período de 1979 a 2019, ou seja o que se iniciou após as perturbações estagflacionistas dos anos 70, e o período que vai do segundo trimestre de 2020 (já acusando os efeitos pandémicos) e o quarto trimestre de 2021, mesmo antes do Senhor Putin invadir despudoradamente a Ucrânia.

Os resultados são surpreendentes, num modelo que divide os aumentos de preços unitários no setor não financeiro da economia americana em três tipos de impulsos: os do crescimento dos lucros, do crescimento dos custos dos fatores de produção que não o trabalho e o crescimento dos custos unitários em trabalho.

O longo período até à pandemia regista um contributo relativamente anémico do crescimento dos lucros para os aumentos de preços (não esquecer que a parte final do período foi um período de zero lower bound e de inflação abaixo da meta dos bancos centrais de 2%). Pelo contrário, o crescimento dos custos unitários em trabalho surge com a parte de leão desse aumento (quase 62% do crescimento de preços é-lhe imputado).

A situação muda radicalmente no período mais recente, invertendo-se radicalmente as proporções do contributo explicativo. Quase 54% do crescimento dos preços é agora devido ao aumento de lucros e apenas 8% é imputado ao crescimento dos custos em trabalho, observando-se também um contributo mais elevado dos custos de fatores de produção não associados ao trabalho (o indicador que temos mais próximo dos efeitos das disrupções das cadeias de valor mundiais).

Bivens interroga-se sobre este registo analítico, pois não é crível que apenas em dois anos as condições de concentração do poder empresarial se tenham alterado decisivamente. Trata-se de uma questão que já pesa nos fatores de desigualdade das economias avançadas já há algum tempo, pelo menos com maior clareza depois da Grande Recessão de 2008.

O economista americano avança com uma explicação curiosa. Até aqui, o poder da concentração empresarial e também da procura de trabalho traduzir-se-ia no rebaixamento de salários (cuja evolução foi largamente inferior à da produtividade na economia americana), passando agora a manifestar-se no seu poder de indução de aumento dos preços. Bivens sugere, assim, que esta informação emerge pouco compatível com a ideia de inflação determinada apenas por um forte sobreaquecimento da economia como um todo. A evidência anterior aponta para que quando o desemprego começa a diminuir a importância dos rendimentos do trabalho tenda a aumentar, o que parece não se verificar nesta recuperação pós-COVID, abruptamente interrompida pelas sombras da guerra.

Bivens compara mais em pormenor as recuperações observadas a partir da Grande Recessão de 2008 com esta recuperação mais recente e consegue perceber que nos primeiros trimestres de recuperação após 2008 também se registou o fenómeno da queda do peso dos rendimentos do trabalho. A diferença está em que o poder empresarial concretizou-se mais em supressão de salários do que em subida de preços, em grande medida também facilitado pelo peso do desemprego após a Grande Recessão. Não parece haver evidência de que tenha aumentado o poder da concentração empresarial (não haveria tempo para tal). Antes parece ter havido uma alteração da forma desse poder se manifestar.

A recuperação pandémica parece ter coexistido, relativamente à de 2008, com menos desemprego e procura mais elevada (a substituição da procura de serviços por procura de bens duradouros foi o traço dominante dos confinamentos), o que associado às disrupções de oferta mundial explica a chamada inflação COVID.

Neste contexto, não se compreende, antes se lamenta, o coro de virgens ofendidas e vitimizadas que se levantou contra a ideia de impostos sobre lucros excessivos temporários. Bivens arruma muito bem esta questão: “Suportar um imposto desse tipo não significa que um aumento súbito do poder empresarial seja a raiz principal da atual inflação, mas significa apenas que as decisões empresariais de fixação de preços tomadas num contexto distorcido pela pandemia são um propagador da inflação. É também um reconhecimento de que as subidas bruscas de preços em muitos setores relativamente ao ano anterior não devem ser entendidas como sinais úteis de mercado sobre os caminhos para a reafectação dos recursos na economia deve ser orientada; pelo contrário, são apenas um desajustamento de curto prazo entre a procura setorial e a oferta que tenderão naturalmente a desaparecer à medida que a economia global normalize depois da pandemia”.

Bem escrito.

O que é particularmente perturbador é que com o desemprego a descer o peso dos salários no rendimento e os salários reais estejam a descer na recuperação.

Claro que o fantasma da guerra, ao encadear-se com toda esta questão, exige prudência e continuidade de aprofundamento no seguimento das tensões inflacionistas.

É o que modesta e pedagogicamente temos feito com as ajudas certas e pertinentes.

Nota final:

Não pude deixar de recordar a máxima de Kalecki com que atormentava os alunos de crescimento económico, discutindo a economia post-keynesiana em economia fechada: "Os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que gastam".

 

Sem comentários:

Enviar um comentário