domingo, 10 de abril de 2022

INCERTEZA DINÂMICA

 

(A imagem desta árvore do teatro de guerra, reproduzida do P2 do Público deste domingo, marcou fotograficamente este dia. Não está necessariamente em linha com o tema do post de hoje mas a sua força levou-me a escolhê-la para a imagem do dia)

(O tema da incerteza e dos modos como ela pode ser abordada constitui um elemento permanente de fricção entre os economistas. O futuro é incerto e indeterminado e por mais que algumas correntes da economia transformem o tempo numa natureza morta, domesticado por pressupostos de perfeita previsão do futuro, a minha aprendizagem da economia foi sempre pautada pela irredutibilidade da indeterminação. Resta-nos observar o passado tal como ele se manifesta nas evidências empíricas económicas que nos são oferecidas pelos números que nos são mais próximos e alinhar a nossa perceção do que pode ser o futuro. Regressando à irredutibilidade do incerto, tendo a estender esses princípios que sempre marcaram a minha formação em economia, lutando sempre contra a corrente dos que insinuam o contrário, à situação política mundial em que a invasão da Ucrânia nos colocou.

Aprendi desde cedo a distinguir entre risco e incerteza (Frank Knight). Ao primeiro podemos sempre associar uma probabilidade mensurável de ocorrência de um dado acontecimento. À segunda não podemos acrescentar nada de mensurável. É com Keynes que se consolida a minha convicção da irredutibilidade da incerteza económica em matéria de futuro, sobretudo a partir do momento em que ele alarga disciplinarmente a compreensão das expectativas do tempo longo em economia. A incerteza aparece assim intimamente associada ao conhecimento dos acontecimentos futuros, tal como ele a descreve no célebre artigo de 1937 do Quarterly Journal of Economics:

“Por conhecimento incerto, permitam-me que explique, não entendo que se trate da distinção simples entre o que é dado por certo e o que é apenas provável que aconteça. O jogo da roleta não está sujeito, segundo este entendimento, à incerteza, nem a possibilidade de um título Vitoriano descer de cotação. Ou que a esperança de vida seja apenas ligeiramente incerta. Mesmo o tempo é apenas moderadamente incerto. O sentido em que utilizo o termo é o que podemos associar à perspetiva de que uma guerra na Europa é incerta e que o preço do cobre e a taxa de juro daqui a 20 anos ou a obsolescência de uma nova invenção ou a posição dos detentores de riqueza no sistema social em 1970 o são também. Sobre essas matérias não há base científica para calcular uma probabilidade qualquer que ela seja. Simplesmente, não sabemos. (Keynes, The general theory of employment. The Quarterly Journal of Economics, February. The collected writings of John Maynard Keynes, volume 14, p. 113-114, 1937).

A antecipação do futuro é assim algo de impossível de alcançar através de processos cognitivos, consagrando assim a irredutibilidade da incerteza.

Tenho pensado nesta distinção básica que Keynes nos trouxe a propósito da perceção do futuro em economia a propósito da incerteza que o desplante russo implicou para o futuro mundial, mais propriamente lendo o artigo de Thomas Friedman no New York Times sobre como agir com uma potência liderada por um criminoso de guerra.

Pois a conjugação de uma mescla de fatores, em que avultam a transformação do próprio Putin, de “bad boy” em criminoso de guerra confesso, a agressividade de um país com vastas reservas de petróleo, gás, recursos naturais e arsenal nuclear, o seu direito de veto nas resoluções do Conselho de Segurança da ONU e o regresso à dimensão imperial instalam a incerteza absoluta na geopolítica mundial. A certeza de que será sempre distinta da que vivemos até há bem pouco tempo, mas a incerteza quanto aos seus contornos. E com a incerteza acrescida de que um eventual desaparecimento de cena de Putin, com a eventual desagregação do putativo império pode conduzir a algo de bem pior do que a tragédia hoje instalada.

Esta dimensão da incerteza absoluta e dinâmica (na medida em que depende de sucessivas jogadas que o teatro de guerra pode proporcionar) confronta-se com outras dimensões que relevam da dimensão de risco, às quais podemos associar uma probabilidade. Esse parece ser o caso da eventual decisão da União Europeia conducente ao embargo do petróleo e gás russo, por muito que possa custar aos alemães e a outros países do centro da Europa como a Áustria. É hoje possível calcular o risco económico e político dessa decisão e confrontá-lo com o rombo que isso representaria no financiamento da invasão por parte da Rússia. O que é bastante distinto de enfrentar o outro tipo de incerteza.

Regressando ao artigo de Friedman, já me parece que o seu segundo princípio para lidar com a nova situação remete para um claríssimo “wishful thinking” de condições necessárias: “Em resumo, a escolha pela população russa de um líder melhor é uma condição necessária para que o mundo possa gerar uma nova e mais resiliente ordem global para substituir a ordem pós-guerra fria, que Putin destruiu. O que é também necessário é que a América seja um modelo de democracia e sustentabilidade que outros países queiram replicar”. Ou seja, duas condições que não parecem nada animadoras. A primeira porque nas condições atuais do autoritarismo russo falar de escolhas da população russa parece um insulto à liberdade coartada. A segunda porque nos últimos tempos o modelo de democracia e sustentabilidade americano corre o risco de entusiasmar muito pouca gente. E isso também faz parte do problema, considerando a enorme bipolarização instalada na sociedade americana.

No reino da incerteza, pois claro.

 

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