sexta-feira, 8 de abril de 2022

AS ELEIÇÕES DOS RASSEMBLEMENTS

 


(A Alexandra Prado Coelho retoma hoje no Público o tema da possível morte em direto do Partido Socialista Francês, tema que há dias tinha tratado do ponto de vista do desastre da esquerda francesa. A política é muitas vezes cruel e tudo indica que Anne Hidalgo a Presidente da Câmara de Paris que o PSF escolheu para emular nas Presidenciais seja a protagonista circunstancial desse desaparecimento em direto. Muito dificilmente isso não acontecerá. Mas o meu ponto para hoje não é esse. Estou atento à vertigem que a subida nas sondagens de Marine Le Pen está a trazer à política francesa, alicerçada sobretudo numa campanha de fortíssima proximidade, enquanto Macron parece recear o contacto popular. Pelos dados que existem, o putinismo de Le Pen parece não ter assustado o eleitorado e uma vez mais o drama dos vazios eleitorais preenchidos pelos mais inconcebíveis arrivistas ameaça a democracia, numa história que já vem sendo anunciada há muitas eleições em França. Entretanto, o candidato da esquerda melhor colocado, Mélenchon, dá uma de digital e aparece sob a forma de holograma em 12 comícios simultâneos. Com tudo isto, intuo que as eleições francesas, particularmente a mais que provável segunda volta de 24 de abril, vão colocar no centro das escolhas dos franceses a matéria dos “rassemblements”. Nunca talvez essa palavra do léxico político francês terá sido tão usada, gasta e por isso perigosamente vulgarizada. Veremos.)

Depois de várias tentativas goradas de assalto ao poder e enfrentando a divisão de forças no seio da extrema-direita, Marine Le Pen retocou a sua Frente Nacional embalando-a com a designação do Rassemblement National com que preparou estas Presidenciais. É um programa típico de uma formação de extrema-direita (que o Le Monde considera formulado em linguagem adocicada) em linha direta de sedução do nacionalismo francês, independentemente de macroeconomicamente Macron ter conseguido algum ressurgimento económico francês. Curiosamente, para seduzir esse nacionalismo induzido pelo desbotamento da imagem da França, Le Pen tem-se aproximado da cabalística ideia do “Grand Remplacement”. É verdade que Le Pen não utiliza na televisão a terminologia da substituição da população francesa por população imigrada, mas em conversas com militantes e encontros de base local a ideia do Remplacement emerge despudorada, acusando altos funcionários da República francesa de ocultar os verdadeiros números da imigração em França. A newsletter do HUFFPOST cita uma afirmação de Le Pen numa reunião política pública de 2011, ainda Frente Nacional, que ficou célebre: “Como é que poderíamos condescender com a perspetiva dos nossos adversários prosseguirem a sua obra de ruína moral e económica do país, entregando-o a uma submersão ditada por uma substituição organizada da nossa população”.

Le Pen permanece assim fiel a um dos vetores centrais do populismo nacionalista que determinou fenómenos como o Brexit, também acenados por Trump, glosando e trabalhando a ameaça dos “outros” nos substituírem e ao nosso corpo de valores. Claro que existe um problema demográfico e dos fortes, que temos olimpicamente ignorado, em França e na Europa em geral. Mas estamos perante uma construção armadilhada em torno de um problema real, que existe e não pode ser ignorado. Recordo-me de ter chegado já há alguns anos a uma pequena cidade da Provença francesa, já tarde e em busca de um restaurante para jantar e ter dado com uma povoação que parecia fantasmagoricamente abandonada de franceses e ocupada por população árabe imigrada para as grandes colheitas da época.

A ideia do Rassemblement com que Le Pen retocou a sua Frente Nacional teve obviamente em Éric Zemmour um enorme fator de atrito, que parece entretanto ter arrefecido, já para não falar do afundanço eleitoral em que a candidata da direita não Lepenista, Valérie Pécresse, parece estar mergulhada. Pressinto, por isso, que o teste dos limites e magnitude desse rassemblement só na segunda volta das presidenciais ter o seu teste definitivo. Mas não pode ignorar-se que o aparecimento de Zemmour com o seu radicalismo pode ter contribuído para des-extremo-direitizar a figura de Le Pen.

Quanto a Macron, embora não tenha utilizado obviamente a expressão “rassemblement”, trouxe para a apresentação do seu programa a ideia de soberania popular, algo que temos de convir que se adapta mal ao exercício do seu mandato anterior e aos inúmeros choques que acabou por protagonizar com largas franjas da população francesa, irredutível em abandonar as grandes linhas do seu Estado Social. A sensação de perda nas últimas sondagens é visível e não será indiferente a votação da primeira volta para suscitar um outro tipo de rassemblement – o barramento de uma possível vitória da extrema-direita na segunda volta. Noutras ocasiões, esse rassemblement democrático aconteceu. Mas em meu entender as condições concretas que presidirão á segunda volta de 24 de abril são tenebrosas. Que significado terão os apelos ao voto dos Socialistas (Anne Hidalgo) e dos Republicanos (Valérie Pécresse) com as mais que prováveis baixas votações na primeira volta? Resta o resultado de Mélenchon que será melhor, mas até que ponto o homem dos hologramas se renderá a um apoio de circunstância a Macron?

Nuvens negras no horizonte para a França e para a Europa.

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